
Há 50 anos, o concerto "Três séculos de música nordestina: do barroco ao armorial", organizado por Ariano Suassuna junto a uma exposição na Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, tornava-se o marco inaugural do movimento armorial. As bases, descritas no programa do espetáculo, exaltavam a produção de obras eruditas com raízes na cultura popular do sertão nordestino. Assim, o cordel, com folhetos cheios de xilogravuras, a música de viola, rabeca e pífano e outras manifestações culturais da região ganhavam um abraço do mundo acadêmico.
No começo, Suassuna pensava que aquilo seria um curso de extensão. O escritor era, à época, diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. Mas aquele ideário tornou-se bem mais que um plano acadêmico: tornou-se um projeto estético que dominou seus trabalhos e inspirou outros tantos.
Além de destacar que as qualidades da cultura popular estavam à margem, o movimento apontou o que considerava uma ameaça: a cultura de massa. Se, nos anos 1970, a indústria que a gerencia era relativamente nova no Brasil, cinco décadas depois, ela é realidade. Nem por isso o armorial está morto, dizem especialistas.
"Vejo um saldo positivo", avalia Carlos Newton Jr., especialista na obra de Suassuna que trabalha junto à editora Nova Fronteira, detentora da obra do autor, para lançar textos inéditos em 2021. "Aconteceu o mesmo com o modernismo [iniciado em 1922 no Brasil]. Você pode até não concordar com os princípios modernistas, mas precisa reconhecer o valor das obras. O armorial fez uma contribuição grande, que inspira produções até hoje".
Um desses herdeiros é Derlon, artista plástico recifense de 35 anos. Seu trabalho começou no grafite, técnica que nunca esteve na raiz do movimento. Hoje, suas pinturas simulam os traços das xilogravuras, uma herança de sua admiração por Gilvan Samico (1928-2013).
"Sou grato por se lembrarem de mim quando mencionam arte contemporânea e armorial. Gosto quando pensam em Samico e lembram do que faço", diz Derlon, que mora em São Paulo há sete anos.
Uma de suas obras, como representante do legado armorial, integra a exposição "Samico e Suassuna: Lunário Perpétuo", que fica em cartaz na Galeria Base, de São Paulo, até 14 de novembro. Grande parte da mostra, porém, como o título entrega, é dedicada a trabalhos dos dois mestres: são 21 gravuras de Samico, produzidas entre 1959 e 2012, e 14 de Suassuna.
"São trabalhos raríssimos que Suassuna pintou nos anos 80. Não se sabe quantos foram feitos, porque ele não numerava", conta Daniel Maranhão, sócio da galeria, que comemora o interesse pelas obras, vendidas a R$ 10 mil cada [só três ainda não foram negociadas].
AmpliaçãoEsse lado "pop" do movimento, conquistado em grande parte após adaptações de trabalhos de Suassuna para a televisão e para o cinema, como o longa "O Auto da Compadecida" (2000), dirigido por Guel Arraes, combinava menos com o início do armorial, mas as suas próprias visões foram se ampliando e ganhando um sentido universal. Antonio Nóbrega, que integrou o Quinteto Armorial tocando violino e rabeca a partir de 1971, vê outro lado: a arte popular ainda é vista pelas classes altas como algo para se ter contato em festas como o carnaval, mas não foi institucionalizada como desejava Suassuna.
"Nos anos 1970, você não encontraria maracatu em São Paulo, como agora encontra. Mas o Brasil institucional, da academia, não mudou tanto", diz Nóbrega, que desde 1992 está à frente e ensina artes no Instituto Brincante, na capital paulista.
Ele cita herdeiros como o grupo Barca dos Corações Partidos, do Rio, que mistura atuação e música. "Mas são exceções. Os artistas se reúnem por editais e se separam, sem poder aprofundar a linguagem".