
O sertão pode não ter virado mar ainda, mas virou, em muitos lugares, cidade...
Áreas nativas, de campos, matas e cerrados, vão dando espaço a ruas, praças, casas e prédios com o avanço urbano. Com isso, os animais, habitantes nativos destes espaços, acabam, não por vontade própria, ganhando cidadania urbana, convivendo diretamente com pessoas, asfalto, concreto, poluição. Gaviões frequentam diariamente a sacada do escritório, de olho nas ratazanas que habitam a Fundo do Vale. Teiús aparecem, de surpresa, no jardim de casa, assustando as visitas. Outro dia, uma coruja surgiu, de repente, na janela da cozinha. Olhou, rodou o pescoço como fazem as corujas e foi embora. Animais surgem aqui, ali e acolá. Esse é o caso das maritacas da praça Sinésio Martins, no Jardim Esplanada, área nobre de São José dos Campos, onde uma delas sendo vítima de ataque de um morador irritado.
A onda de apoio à maritaca, batizada de Lorinho, tomou as redes sociais. Desde pequeno aprendi: não se maltrata bicho.
Anos atrás, morava em uma casa cujo quintal servia de ninho para maritacas, que buscavam refúgio nas árvores. Pela manhã, o matracar delas servia de despertador. No final da tarde, a volta para os ninhos marcava o fim do dia, a hora de encerrar o corre-corre diário. Elas nunca foram além disso: um arrulhar alto, que fez um amigo perguntar uma vez, quando falávamos ao telefone, se eu morava na roça, tal a altura do som das aves. Elas lá, eu cá, tivemos uma relação amistosa.
Nessa mesma casa, convivi com um passarinho bravo. E bravo por uma boa razão.
No jardim da frente, uma passarinha fez ninho num pé de manacá da serra e, tão logo nasceram seus filhotes, passou a defender o território. Ai de quem passasse, desprevenido, pela calçada. Lá ia a passarinha farfalhando as asas, bicando bonés e chapéus, tirando um rasante da cabeça das pessoas. Gatos e cachorros eram alvo fácil. Os guardas da rua se divertiam com a cena. Uma vizinha, mais prevenida, só passava na frente de casa sob a proteção de uma sombrinha. Eu mesmo, sabedor dos ataques, levei alguns sustos. Uma vez, abrindo a porta de casa, longe da rua, escutei o farfalhar das asas e abaixei rapidamente a cabeça, escapando por um triz de levar uma bicada no cocuruto. Tão logo os filhotes abandonaram o ninho, a luta territorial acabou.
Ela estava errada?
Claro que não, agia por instinto puro em defesa das crias.
Tempos depois, quando nova ninhada foi posta, já estávamos todos preparados para os voos rasantes da passarinha. Bichos são assim, a gente aprende com eles.
Dos perigosos, aprendemos a nos defender e até ficar longe. E aprendemos, às vezes, como no caso das maritacas do Esplanada, que os bichos mais perigosos muitas vezes somos nós, humanos.