RADICALIZAÇÃO

Radicais que ameaçam 'matar esquerdistas' dizem agir em nome da fé, da família e do país

Socióloga vê prática de desumanização em grupos da extrema direita para legitimar o ódio contra quem pensa diferente

Por Xandu Alves | 23/07/2023 | Tempo de leitura: 5 min
São José dos Campos

Reprodução

Equipe de reportagem de OVALE foi ameaçada e agredida por radicais alinhados à extrema-direita
Equipe de reportagem de OVALE foi ameaçada e agredida por radicais alinhados à extrema-direita

A banalidade do mal.

O conceito criado pela filósofa judaico-alemã Hannah Arendt (1906-1975) para tentar compreender o sistema nazista serve de parâmetro para refletir sobre a proliferação de grupos radicais no Brasil.

Como observou Arendt sobre os hitleristas, que transformaram o mal em uma prática comum, como o trabalho, a radicalização do discurso de ódio em grupos da extrema direita se nutre de dois pilares: o religioso e o político.

Há duas semanas, OVALE registrou extremistas em São José dos Campos, identificados com pautas bolsonaristas, cogitando a prática de assassinato de pessoas ligadas a pautas da esquerda.

Conforme cartaz de divulgação do ato, os participantes se declaram cristãos, protetores da família e contra o comunismo e a ditadura que, para eles, está instalada no Brasil. Dizem ainda defender um país "justo, livre e democrático".

Socióloga e pesquisadora de pós-doutorado do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP (Universidade de São Paulo), Veridiana Campos recorre ao psicólogo social canadense Albert Bandura (1925-2021) para explicar a incoerência de assumir-se cristão e pregar a violência.

Veridiana lembra Bandura que descreveu a prática do “desengajamento moral”, o ato de desumanizar aqueles contra os quais se vai praticar a violência.

“Ainda que Jesus Cristo tenha sido um defensor dos direitos humanos de todas as pessoas, eles não percebem dessa forma, criando uma ideia do que seria ser cristão”, afirma a socióloga.

A desumanização do outro é uma forma de legitimar a violência e o ódio, tendo a religião como sustentáculo moral, ainda que completamente contrário aos preceitos evangélicos mais básicos.

“É processo com mecanismos mentais e emocionais para desumanizar as vítimas. É a mesma coisa que Hannah Arendt observou em relação ao sistema nazista”, diz ela.

CUSTOMIZAÇÃO DA FÉ

Em palestra do ‘Café Filosófico’, parceria entre a TV Cultura e o Instituto CPFL, o historiador, professor e escritor Leandro Karnal refletiu sobre o uso da religião como suporte ao discurso violento.

Karnal chamou de “fé customizada” a prática de usar a religião para validar atos de opressão, realidade que piora com a proliferação das redes sociais.

“O Deus customizado das redes sociais deixa de ser Deus e a experiência do sagrado se dissolve nas práticas sociais. Eu falo em nome de Deus, assim comprovam minhas redes sociais”, disse Karnal.

“Como é possível alguém gravar vídeo cheio de ódio e incitando ao ódio, falando da necessidade de destruir a dignidade humana, de incitar a violência e, ao mesmo tempo, posar de defensor dos preceitos evangélicos?”, questionou o historiador.

Karnal disse que o ódio e a violência são condenados de forma explícita e direta no Sermão da Montanha, núcleo duro do cristianismo.

“Jesus recriminou o impulso de Pedro que, ao cortar a orelha do soldado romano, Cristo restaurou essa orelha e anuncia ao apóstolo: ‘Aquele que usar a espada será punido pela espada. Eu não vim trazer a espada, mas a paz’.”

Karnal finalizou dizendo que todo cristão tem o dever de ser “inimigo da tortura e da violência”, e não propagador de práticas opressoras.

“Pela natureza da encarnação de Jesus e sua morte sob tortura, todo e qualquer cristão nasce com a obrigação de ser inimigo da tortura e da violência. Todo corpo humano faz parte do corpo de Cristo. Logo, qualquer tortura em um ser humano, independente da ação que tenha cometido e da sua orientação ideológica, é uma tortura no corpo de Cristo”, afirmou o historiador.

POLÍTICA

No âmbito da política, segundo Veridiana, outro alicerce dos extremistas, o descolamento da realidade fica evidente na falta de conhecimento sobre comunismo e ditadura.

“É uma forma de engajar pessoas em torno do ódio, de construir muros ao invés de pontes. Eles se apropriaram desse termo e o resignificaram para quase tudo o que está voltado num governo com um olhar um pouco mais à esquerda. Não faz o menor sentido pensar que estamos numa ditadura comunista”, observa a pesquisadora, que também integra o Podhe (Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas), projeto de extensão do NEV.

Para ela, usar a religião e a política é parte do projeto de poder que a extrema direita “pretendeu e que ainda pretende para o país”.

“Essa legitimação [do ódio] e o uso da internet como ferramenta de conexão entre propagadores da extrema violência faz com que eles se fortaleçam. Funciona como fermento da radicalização, misoginia, xenofobia, transfobia e todas essas formas de opressão violenta que podemos considerar.”

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BOLSONARO

Na avaliação de Veridiana, governos como dos ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump (EUA) legitimaram sentimentos e preconceitos que já existiam na sociedade brasileira e americana.

Portanto, a socióloga diz que a radicalização da extrema direita no país não surpreende, mas é preocupante.

“Mesmo Bolsonaro estando inelegível, os bolsonaristas ou acirrados com esses discursos de violência extrema continuam por aí, e a gente tem que tomar conta, porque nossa democracia ainda tem aparelhos fragilizados. Não temos certeza de como contê-los e saber o que eles pretendem.”

Veridiana não vê a extrema direita se desmobilizando no Brasil, mesmo diante do clima político mais ameno do que no governo Bolsonaro, sem ataques à imprensa e às instituições.

“Quando pensamos em tempo social e histórico, uma década é pouco. Mas considerando a força com que o ‘mito’ conseguiu projetar nessas pessoas esse sentimento que já estava latente, não creio que isso vá diminuir. É para ficar de olhos muito abertos e atentos”, afirma a socióloga da USP.

Para ela, o discurso radical ainda “tem aderência em parte da sociedade”, que “associa muito com o discurso da família tradicional, da proteção, da segurança, das armas. Isso sempre esteve aí”.

A pesquisadora acredita que o país terá que encontrar formas de conviver com quem pensa dessa maneira, mas sem deixar de identificar e punir os extremistas que praticam crimes. Para ela, os radicais vieram para ficar.

“Se alguém inflama essa perspectiva beligerante, isso aumenta. Eles não vão entrar no armário de novo. Eles estão entre nós, no nosso almoço de domingo”, afirma Veridiana.

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