CLUBE DE LEITURA

Literatura no ‘Mulheres do Brasil’

Por Sonia Machiavelli | especial para o Portal GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 5 min

Todo escritor deseja ter seu livro lido porque ao chegar ao outro, através da leitura, é que se cumpre a função primordial da literatura que Antônio Cândido, ainda nossa maior referência na crítica, sintetizou no triângulo autor/obra/leitor. Por isso aceitei alegre e honrada o convite de Lucineia de Paula para falar na noite de quinta, 11, sobre meu livro de contos ‘O Poço’ no Clube de Leitura do ‘Grupo Mulheres do Brasil’, que respeito e admiro por iluminar caminhos, quebrar barreiras e inspirar união e sororidade.

Considero de valor inestimável a jornada desse movimento que mobiliza mais de 130 mil voluntárias no Brasil e Exterior e deve a existência à visão e paixão de suas idealizadoras, notadamente Luiza Helena Trajano. A liderança arrojada e o compromisso da empresária com a causa feminina levaram à criação do Grupo que abrange muitas frentes de atuação, como educação, sustentabilidade, combate à violência em geral e ao feminicídio, promoção da igualdade racial e, já agora, apoio à literatura.

Como se vê, o legado da poderosa Luizinha, como os francanos a chamam, não se constrói apenas pelo perfil arrojado da empresária, mas também pela rede de apoio e empoderamento que ela ajuda a tecer, garantindo que a voz de milhares de mulheres seja ouvida e valorizada. Entre as vozes irrompeu há algum tempo a de Lucineia de Paula, professora, declamadora, amante da literatura, conhecedora de teoria literária,  agitadora cultural. Foi dela a sugestão acolhida para ouvir escritoras francanas, o que representou a validação de um trabalho solitário e custoso, principalmente em país onde se lê pouco. Já se apresentaram no Clube de Leitura, Regina Bastianini e Vanessa Maranha. Fui a terceira a passar pela experiência marcada por muitas surpresas, uma delas ouvir comentários originais sobre um livro cuja segunda edição revisada e ampliada acabou de deixar as oficinas da Ribeirão Gráfica.

Comecei nossa prosa celebrando a oportunidade de dizer ao auditório feminino que avalio o ato de escrever como o definiu João Cabral de Mello Netto, comparando-o às águas de um rio que às vezes preenchem o leito e outras o transbordam.  Impactante metáfora, ela faz uma síntese da natureza dual da escrita, mostrando que esta não é apenas forma de expressão artística. Vai mais além como necessidade interna que atende a dois impulsos opostos mas complementares.

Assim me comunicando e percebendo que era ouvida, senti grande liberdade para continuar dizendo às que haviam lido o livro que ‘refúgio’ e ‘erupção’ são duas características presentes na minha ficção onde o extraordinário se esconde nas frestas do cotidiano. Mostrei-lhes que as narrativas de “O Poço” recortam a verdade factual alojada na lida exaustiva de um lavrador no Nordeste escaldante ou no  desamparo de uma criança dentro de  gelada quitinete em Londres; no quintal de casa do interior paulista onde existe um forno de barro ou em apartamento gaúcho no qual um adicto promove barbaridades colocando em risco a vida do próprio filho; na sala de espera de um consultório  ou dentro de um monumento que homenageia um general no ápice da ditadura militar, na maior cidade do nosso país. A matéria de minhas histórias pode estar na sala de espera de um consultório, num aeroporto, em delegacias ou praias, em espaços não nomeados geograficamente onde são flagrados o envelhecimento e suas perdas, o desamor e suas desordens, mas também a esperança que resiste, por exemplo, no enfeitar uma árvore para comemorar Natal diferente posto que novo.

Na interlocução que se seguiu, fiquei gratificada ao perceber que as leitoras ali presentes haviam reconhecido nas minhas narrativas recortes da vida, muitas vezes crus, outras poéticos, mas sempre honestos no que diz respeito à realidade apreensível. Que tinham se sentido próximas aos personagens e dentro dos cenários; e compreendido que minhas narrativas se destinam aos que procuram refletir sobre o que significa ser humano e estar diante de dores pungentes, alegrias fugazes, contradições perturbadoras, situações incontornáveis, desafios que precisam ser superados – cada qual a seu modo e respeitando sua peculiar condição de não-herói.

Foi bom poder reafirmar que não julgo personagens e que minha tentativa é a de que ‘O Poço’ seja um convite para que a leitora, o leitor ocupem por algum tempo o lugar do outro, exercitem a alteridade, percebam como a vida  é vasta, rica, flui incessantemente e não se deixa capturar em relógios, calendários, espaços delimitados. Talvez por aí se entenda que o desejo de mostrar algumas de suas manifestações leve escritores à criação, porque assim o fazendo estão, como disse Romain Rolland a respeito de toda forma de arte, ‘matando a morte’.  

Por ser a literatura um dos lugares onde mais gosto de estar, na noite de quinta-feira me senti plena, muito feliz, conversando com mulheres de rico repertório literário, sensíveis, genuínas e interessadas, que teceram considerações iluminadoras sobre meu processo de escrita que consiste basicamente em pinçar fatos, reinterpretá-los e os reelaborar pelo filtro da subjetividade. Elas me devolveram com grande generosidade leituras renovadas que me emocionaram demais por me levarem a olhar outra vez minha própria obra e resgatar Jorge Luís Borges: ‘não existe um livro único nem para o autor nem para os leitores pois a cada leitura outras camadas são descobertas ou reinterpretadas inaugurando uma obra já diferente.’

Como disse a todas, considerei esse encontro um presente de Natal antecipado que recebi comovida e pelo qual agradeço, tanto por conta do calor das interações quanto pelo fato de terem elas em seu conjunto me infundido mais esperança na literatura como fonte de mobilização de emoções e, até, poder de promover catarses.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

Comentários

Comentários