"Um carpinteiro judeu transformou a história mais profundamente do que qualquer outro evento ou figura"
Will Durant, historiador e filósofo americano
Entramos na semana do Natal, data em que se comemora o nascimento de Jesus Cristo. É uma convenção, porque sabe-se que é praticamente impossível, por diversas circunstâncias históricas, que Jesus, o homem, tenha nascido em 25 de dezembro. O mais provável é que Maria tenha o dado à luz entre quatro e seis anos antes, possivelmente nos meses de setembro ou outubro. Mas símbolos importam e, para efeitos de celebração e significado, convencionou-se no século V (portanto, há mil e quinhentos anos) que o aniversário de Jesus seria celebrado no dia 25 de dezembro.
Para além da comilança, dos perus e pernis, das trocas de presentes e reuniões familiares, é tempo de reflexão. Ou, pelo menos, deveria ser. Se parte considerável dos 8 bilhões de habitantes deste planeta se considera cristã e, portanto, seguidora em alguma medida dos ensinamentos de Jesus, pensar no que ele disse, pregou e fez poderia inspirar.
Mas, na prática, dois mil anos depois de sua jornada, parece que nunca estivemos tão distantes e apartados de suas lições, tão profundas e renovadoras. E, há tempos, tão deturpadas, quer seja pela conveniência de alguns líderes religiosos, pelo oportunismo de movimentos políticos, ou simplesmente ignorados porque não se consegue alcançar o que, de fato, disse e pregou Jesus.
Fico pensando em como Jesus reagiria se caminhasse pelo mundo de hoje e topasse com igrejas e templos construídos em seu nome, ocupadas aqui e acolá (com muitas boas exceções, é claro) por religiosos mais preocupados com a vida intima do seu rebanho do que com o preconceito, inclusive racial, que segrega e exclui; mais dedicados a intermináveis sermões com julgamentos rasos sobre o que consideram certo ou errado no relacionamento de homens e mulheres do que com a fome que ainda assola o mundo; inertes quando seus pares surgem no meio de escândalos de abusos cometidos contra crianças.
Como reagiria diante de líderes políticos que, em seu nome, justificam a barbárie, a violência, a exclusão, a intolerância. O que diria de homens que em nome de Deus, se explodem no meio de inocentes, ou matam jovens numa festa apenas porque professam uma fé distinta e, assim, acreditam que chegarão ao reino dos Céus graças a seus “feitos”, onde dúzias de virgens os aguardam para o prazer eterno?
Seria impreciso dizer que isso começou agora. Há séculos matam, perseguem e excluem em nome de Deus, usando, no mais das vezes, para justificar tais atrocidades, as palavras deturpadas, usadas completamente fora de contexto, dos profetas que inspiraram as grandes religiões monoteístas. Maomé, no caso do Islã. E Jesus, o aniversariante, para a Cristandade.
Para além dos textos religiosos, seria importante, ainda que utópico, que todos parassem para pensar, por alguns minutos que fosse, sobre quem foi Jesus Cristo, naquilo que disse (ou a ele foi atribuído) e como viveu. Sem dogmas, sem interpretações convenientes, apenas refletindo sobre os fatos conhecidos e consensuais. Não há melhor maneira de entender quão distante estamos todos de sua mensagem.
Para começar, é bom lembrar em que mundo Cristo nasceu, viveu e morreu. Maria deu à luz em Belém, também conhecida como “Cidade de Davi” (supostamente, o local de nascimento do Rei Davi dos Judeus), um vilarejo sem maior importância econômica localizado a 8 km ao sul de Jerusalém, parte da província romana conhecida como Judeia. Quem dava as ordens era o poderosíssimo primeiro imperador de Roma, Caesar Augustus (sobrinho do também grande Júlio César, que governou como cônsul até ser assassinado pelo enteado, Brutus).
Jesus passou infância e adolescência em Nazaré, território de uma outra província, Galileia, no norte do que hoje conhecemos como Israel. Era ainda menor do que Belém, basicamente uma comunidade agrícola nos confins do império Romano, distante do centro de poder e das cidades mais relevantes.
Quando começou a pregar, Caesar já tinha sido sucedido pelo imperador Tibério. A Judeia, província povoada por judeus e ocupada por Roma, era governada por Pôncio Pilatos, subordinado a Tibério, obviamente. O Sinédrio, conselho de rabinos e sábios, possuía alguma autonomia em questões religiosas, mas nada podia ser exercido à revelia de Pilatos. A Galileia, governada pelo tetrarca Herodes Antipas, um judeu “local”, tinha também alguma autonomia, mas igualmente subordinada, em última instância, a Roma.
Os conflitos eram frequentes. Roma ocupava militarmente, tinha a última palavra em tudo, interferia na vida cotidiana, e, tanto pior, exigia e cobrava pesados impostos. Os judeus não gostavam nem um pouco. Rebeliões eram frequentes. Execuções, também. Enquanto alguns pegavam em armas para desafiar Roma, a maioria preferia esperar a chegada do “Messias” que, segundo a tradição do Antigo Testamento, lideraria um exército que libertaria o povo judeu.
É neste contexto que Jesus começa suas pregações, quando tinha cerca de 30 anos, pouco depois de ser batizado no rio Jordão por seu primo João Batista, que foi decapitado por ordem de Roma. Era considerado um “agitador”. Fosse em tempos atuais, João Batista seria o que muitos “cidadãos de bem” classificariam como “subversivo”.
E o que disse Cristo? Desde suas primeiras pregações nas vilas da Galileia, passando pelo seu sermão inaugural na sinagoga de Nazaré, até suas últimas lições durante o calvário, Cristo só transmitiu mensagens de paz, de amor, de compreensão e tolerância, de perdão – inclusive, para quem o odiava.
Há que se considerar que apesar de ter se apresentado como o Messias, frustrou muitos, até seus apóstolos, quando se negou a montar um exército. Rechaçou atacar os soldados romanos. Nunca negou sua condição de judeu. Não construiu um templo. Não pediu dinheiro. Não criou nenhuma instituição hierarquizada. Não excluiu ninguém.
Pelo contrário, foi aos excluídos que se dirigiu. Ele não celebra, nem se reúne, com os “virtuosos”, ou com os poderosos, nem com os ricos. Ele vai até os leprosos, as prostitutas, os odiados coletores de impostos, os pescadores miseráveis, e faz deles seus seguidores. Não dorme em palácios, mas ao relento. Não acumula alimentos, mas divide o que tem. Não apresenta uma tese de prosperidade como caminho para o Céu. Diz que todos são dignos de perdão.
É incrível constatar que não há uma única citação atribuída a Cristo em que ele incite ou justifique a violência, sob qualquer pretexto. Pelo contrário. Recomendava a quem o ouvia: “Amai os vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem” (Mateus 5:44). Quando Jesus é preso no jardim do Getsêmani e Pedro faz menção de usar a espada para defendê-lo, ele desautoriza. “Embainha a tua espada, pois todos que lançarem mão da espada, à espada perecerão” (Mateus 26:52).
Numa das minhas passagens preferidas, quando é abordado por Pôncio Pilatos sobre sua condição de “Rei dos Judeus”, Cristo responde com absoluta elegância e quase sarcasmo. “Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus servos lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus" (João 18:36). É quase como se dissesse ao governador Romano: “Fica tranquilo, que não estou interessado neste tipo de poder. Se estivesse, meus seguidores nem teriam permitido que fosse entregue aos líderes do Sinédrio”.
Jesus Cristo, independente de crenças religiosas, foi um homem brilhante, pacifista, com uma compreensão extraordinária da natureza tão imperfeita de todos nós, misericordioso, generoso, compreensivo, inclusivo. Não ditou regras, não impôs comportamentos. Um sábio, na exata acepção do termo, e suas lições deveriam servir de inspiração a todos, dos muitos religiosos aos ateus, dos cristãos aos budistas. Ninguém colhe nada de mal ao revisitar seus exemplos. O mesmo não se pode dizer daqueles que bebem nas interpretações quase doentias feitas por alguns dos representantes dos modernos sinédrios.
Que neste 25 de dezembro possamos resgatar a mensagem original de Jesus. Nua, crua, bela, poderosa, impactante, transformadora. Sonhar não custa. Feliz Natal!
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias.