De Camões para Dinamene


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Luís Vaz de Camões é o maior poeta da língua portuguesa, reconhecido por seus pares. Gigantes como Antero de Quental, Bocage, Drummond e Bandeira tratam-no como o maior de todos. E na obra do autor de "Os Lusíadas" há uma série de poemas dedicados à Dinaneme, a quem o poeta "não deixara nunca de querer". A musa aparece em sonetos, no que ficou conhecido como "ciclo de Dinamene". O nome origina-se de personagem da mitologia greco-latina.Dinamene era uma ninfa do mar, uma das cem nereidas, as filhas de Nereu. O Mister Catra da mitologia clássica teve essa centena de filhascom Dóris.

Quanto à musa de Camões, não se sabe sua verdadeira identidade. Seria uma namorada chinesa que o poeta, então trabalhando para o governo português na China, queria levar para Portugal. Tal namorada teria morrido num naufrágio no mar, ao sul do território chinês. Reza a lenda, tão fantasiosa quanto estapafúrdia, que o poeta preferiu salvar manuscritos de sua epopeia a salvar a namorada. Imagine um náufrago, em meio à tempestade marítima, agarrando-se a um tijolão de papel. Afundariam ambos. E "salvar" como? Embalando os manuscritos em plástico impermeável, inexistente na época? Inventar causos inverossímeis é tradição de nossa espécie. O que se sabe mesmo é que Camões escapou de tal acidente e compôs versos a respeito da separação amorosa: "Ah, minha Dinamene, assim deixaste/ quem não deixara nunca de querer-te?/Ah, ninfa minha, já não posso ver-te/, tão asinha esta vida desprezaste".

Ou teria sido ela uma fidalga portuguesa cuja família, aristocrática e esnobe, não queria o relacionamento com o poeta pobretão? O ensaísta português Ernani Cidade defende a tese de que as quatro primeiras letras, Dina, formam o anagrama de Dona Joana Noronha de Andrade, a tal moçoila da nobreza. A família arrumara um casamento para ela com um nobre português a serviço em Calecute, na Índia. Joana/Dinamene teria morrido em viagem de navio ao país asiático, e sepultada no mar. Morta em naufrágio ou sepultada sob as ondas, as águas do mar seriam o túmulo da amada ("puderam essas ondas defender-te/que não viste quem tanto magoaste?"). Daí os sonetos citarem sempre o mar: "'Ondas', dizia, antes que Amor me mate,/torna-me a minha Ninfa, que tão cedo/me fizestes à morte estar sujeita". Diante da grandeza do mar (imenso, sem dúvida, porém menor que a solidão do poeta), o eu lírico comenta que ninguém responde ao seu pedido ou sequer parece ouvir o que ele diz: "Ninguém lhe fala. O mar, de longe, bate;/move-se brandamente o arvoredo.../Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita".

Num de seus mais tocantes sonetos, o eu lírico diz que ela lhe aparece em sonhos, mas que ao chamá-la, consegue dizer apenas "Dina", e desperta da ilusão sem completar o nome ("e antes que diga mene acordo e sinto que nem um breve engano posso ter"). A visão desfaz-se. Uma fração de felicidade tão ilusória quanto breve. Haja dor de cotovelo. Outra de suas memoráveis criações contrapõe a triste vida do sujeito aqui na terra com a da amada agora nos céus ("Alma minha gentil que te partiste/Tão cedo desta vida descontente/Repousa lá no céu eternamente/E viva eu cá na terra sempre triste"). Ele está numa pior, querendo recuperar-se. E pede a ela para interceder com o Todo Poderoso a fim de levá-lo para perto dela. A sutileza aparece na condição estabelecida, a de que ela só peça a Deus caso considere o sofrimento dele digno de algum valor: "E se vires que pode merecer-te/alguma cousa a dor que me ficou/da mágoa, sem remédio, de perder-te/Roga a Deus que teus anos encurtou/Que tão cedo de cá me leve a ver-te/Quão cedo de meus olhos te levou".

Para ler os sonetos na íntegra, deve-se lembrar de seu primeiro verso. Camões não costumava dar título a seus poemas, e eles ficaram conhecidos pelo verso inicial. Dos citados aqui: "O céu, a terra, o vento sossegado"; "Ah! minha Dinamene, assim deixaste";"Quando de minhas mágoas a comprida"; "Alma minha gentil, que te partiste"; "Como quando do mar tempestuoso". Procure tais poemas. O encontro com a beleza é inevitável.

FERNANDO BANDINI é professor de Literatura do Ensino Médio

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