“1919, 10 de julho. Palmas. A porta aberta não responde. / Ô de casa! Mais palmas”. Esses versos abrem “A visita”, poema de Carlos Drummond de Andrade que trata do encontro dos poetas Mário de Andrade (1893/1945) e Alphonsus de Guimaraens (1870/1921), em Mariana, Minas Gerais. O veterano Alphonsus era juiz de Direito, e Mário, um jovem professor de piano no Conservatório de São Paulo. “A menina manda entrar. O corredor abre à esquerda, na tristura de cinza do escritório baixo”, segue o poema de Drummond, “Dentro, o homem sozinho, 50 anos por fazer, mas feitos secamente no rosto grave: -- O senhor deseja? / -- Vim conhecer o Príncipe, vim saudar o Príncipe dos Poetas das Alterosas Montanhas!/ O homem sorri: -- O senhor está equivocado ou caçoa talvez./Sou há 13 anos, há 13 mil anos eternamente juiz municipal em míseros sertões./ Em todo caso, sente-se. Conversar é bom em minha solidão que escorre a contemplar o deserto das cidades mortas”.
O encontro do moço Mário, na época com 26 anos, futuro ícone da literatura brasileira, com mestre Alphonsus, no ocaso de sua vida, foi narrado a Drummond por João Alphonsus, contista mineiro, filho do poeta. João e Carlos foram colegas de jornalismo e amigos. João contou ao outro a importância de tal visita na vida do pai. Reconhecimento vindo de forasteiro, que se importara em vê-lo naquelas lonjuras.
Homem reservado, o velho afeiçoa-se ao rapaz expansivo, um redemoinho de alegria em sua rotina de leitor de processos e pareceres. Alphonsus cursara Direito no Largo de São Francisco, na capital paulista, cidade em que nasceu o visitante. Seguem os versos de Drummond: “São Paulo! O senhor vem da minha mocidade, sabe?” Falam de afinidades, de Allan Poe, o atormentado poeta estadunidense, inspirador de ambos. O jovem instiga o outro a ler algum inédito: “Vamos, solte os seus magníficos guardados”. Alphonsus entrega-lhe manuscritos, que Mário lê em voz alta, extasiado: “Vaga em redor de ti uma fulgência/que tanto é sombra quanto mais fulgura”; “Tens um lis de ternura que desliza/’A flor da pele em mágoa suavizante...”. Mário não se contém: “O senhor diz o indizível” (...) O moço lê. O homem escuta, mão no rosto./ Escuta longamente, surpreendido./ Que lhe diz essa voz, que ele não saiba?/ Que novidade traz, a repeti-lo?/ Não distingue, escutando, os próprios versos./ Os versos se desprendem de seu dono”. Canta o texto drummondiano: “Que poeta é esse, do luar dos adivinhos, do cinamomo, da enlouquecida Ismália, quem é este?”
O viajante precisa partir, o outro quer retê-lo: “—Impossível. Começa a nascer outra visita/ Tenho sede do sinal dos homens raros. (...) Leva-o à porta. A rua tão vazia/toda se enche com o vulto do viajante alto, entre sobrados, desaparecendo”. A visita inesperada estimula “o solitário de Mariana” a lançar seus inéditos. Sai em 1920 “Mendigos”, prosa do autor, último livro publicado em vida. O poeta ainda deixou organizado os versos de “Pastoral aos crentes do amor e da morte”, editado postumamente.
Admirador de ambos, Drummond transformou o encontro desses dois grandes em poema de beleza incomum.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)