OPINIÃO

Carnaval, cultura e economia circular


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A maestrina Chiquinha Gonzaga, em 1860, foi criticada pela sociedade brasileira por compor choros e músicas “de negros”. É de sua autoria as músicas “Corta-jaca”, um escândalo para a época, e  “Ô Abre Alas” (1899), ícone do Carnaval de todos os tempos. O grande músico e badalado João Gilberto também fez uma música, satirizando as críticas contra o samba. “Madame diz que a raça não melhora/Que a vida piora por causa do samba/Madame diz o que samba tem pecado/Que o samba, coitado, devia acabar.”

O samba não acabou e ele não vai morrer. Me alegra a alma ver a quantidade de jovens que cantam, ensaiam, aprendem instrumentos e se dedicam ao samba. Letristas maravilhosos surgem a todo momento. Eu, aluna frustrada de piano, amante de música, irmã de maestro, agradeço por termos uma diversidade enorme musical neste país, graças, em sua maior parte, pela presença da negritude em nosso ritmo, melodia e harmonia. Eu digo sempre que o melhor produto de exportação brasileiro é a música. Ela abre portas, janelas, promove inclusão, oferece trabalho e oportunidades.

O maestro Moacir Santos quem o diga. Nascido no sertão de Pernambuco, foi para Hollywood musicar filmes e é reconhecido pelos americanos como um dos maiores músicos mundiais.  O trompetista Wynton  Marsallis,  diretor artístico do Jazz at Lincoln Center, o considera um músico brilhante, excepcional e não raro faz concertos somente com a música do mestre brasileiro.

Jundiaí é um celeiro de músicos eruditos extraordinários, que tocam pelo mundo afora nas maiores orquestras mundiais. Fabio Zanon, Luiz Mantovani, Michel de Paula, Fabio Vianna Peres, Suzana Ferrari, Vinicius Atique e tantos outros. A batuta certeira de nossa regente maior Claudia Feres mostra  que Jundiaí sempre foi e será um expoente musical. Claudia, sem falsa modéstia, é considerada uma das melhores regentes brasileiras em atuação. A Orquestra Sinfônica de Jundiaí é uma pérola rara de música e resistência, com público cativo.

Além disso, há diversos projetos de iniciação musical na cidade, que levam às crianças em situação de vulnerabilidade uma nova opção de vida, que inclui estudo, mas também inclui disciplina e rigor que a música requer. Digo sempre que uma criança que passa pela musicalização infantil tem outro futuro.  

Mas não é da música erudita que quero falar. Quero falar da resistência do samba em nossa cidade. Tem o Tom Nando, mas tem o Bocudo também, um dos maiores percussionistas que já vi, tem uma moçada ótima do maracatu. Nas escolas de samba, músicos extraordinários ensaiam o ano todo. Há toda uma economia circular em torno das escolas de samba. Elas dão emprego e oportunidades. 
Neste Carnaval, somente na cidade do Rio de Janeiro, R$ 5,5 bilhões serão gerados em torno da data. Em São Paulo, cujo Carnaval de rua cresce a cada ano, com mais de 700 blocos, a folia vai faturar mais que o Rio, com previsão de R$ 6,4 bilhões arrecadados com a data. 

Já passou da hora de nossa cidade entender que Carnaval é economia circular. Com a participação de pessoas da comunidade, fomenta-se a economia local, o ensino de instrumentos e - o que não é calculado - o sentimento de pertencimento a uma comunidade, a um trabalho colaborativo e de todos. A história da negritude, do samba, em Jundiaí, é a mais antiga do Estado. Calar essas vozes e resistência é algo impensável, culturalmente e historicamente falando. 

Obviamente que os fanáticos fundamentalistas vão querer calar o samba, como vimos no triste episódio na saída do Bloco Kekerê, no último domingo. Mas, digo, o Brasil é negro. Em sendo negro, a manifestação artística e cultural deste povo é a extrema importância como reconhecimento de todos nós como povo brasileiro. 

O que cala a minha alma é que estes episódios não reverberam. O negro resiste há séculos e sua cultura está tão entremeada ao país, que, para mim, é impossível ser brasileira e não ser negra também. 

Aos mestres sambistas jundiaienses, e cito aqui o Nego Véio, minha gratidão eterna. Graças a vocês, temos ritmo e harmonia e saímos melhores do cotidiano que avassala nossas almas.

Ariadne Gattolini é jornalista e escritora. Pós-graduada em ESG pela FGV-SP e editora-chefe do Grupo JJ de Comunicação.   

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