OPINIÃO

A beleza e suas expressões

19/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Recordo-me de um paciente que acompanhei durante o meu internato na UNICAMP, durante o estágio da pediatria. Por ser uma grande universidade, lá se reuniam crianças vindas do Brasil inteiro, algumas delas com doenças raras.

Era o caso de Marquinhos, que se encontrava internado há incríveis 10 anos (praticamente todo o tempo de vida dele!). Possuía uma condição rara, que afetava a transmissão dos pulsos nervosos do seu cérebro para quase todos os nervos do seu corpo. Ele era paralisado em seus movimentos da região da própria boca para baixo, somente sendo poupado os nervos acima deste nível (não se sabe o porquê).

No entanto, a recepção das sensações não era afetada. Marquinhos enxergava, ouvia, degustava, tinha olfato e sentia contato na sua pele, seja carinho ou dor, como em qualquer criança da idade dele. Como portadores desta condição não conseguiam usar o próprio corpo para se mexer, ficando aparentemente presos dentro dele, somente olhando o mundo do lado de fora "pelas janelas" dos seus olhos, a condição foi batizada na medicina de "síndrome do encarcerado" (do inglês locked-in)

É bem comum que a situação do Marquinhos desperte um sentimento de pena nas pessoas e assim foi comigo e todos os colegas estudantes. No caso dele, em especial, a síndrome era decorrente de uma doença congênita rara, sem cura, deixando-o dependente de uma série de aparatos por toda sua vida, simplesmente para poder sobreviver. Vejam que ele não tinha movimentos de diafragma para respirar e por isso estava fadado a ligar-se a um respirador 24 horas por dia e para sempre.

Qualquer sensação desagradável que se esperava ter, no entanto, não sobrevivia ao primeiro contato com Marquinhos: ele era uma criança feliz, expressiva e incrivelmente bela. Todas as suas ferramentas para expressar os seus desejos, ideias e vontades estava na musculatura em torno dos olhos, testa e bochecha, além de um ou outro músculo da boca

No entanto, olhos cheios de vida, animação e alegria quando via a mãe, os amigos (vários, entre eles muitos de nós, os internos) ou mesmo a sua indignação divertida expressa no longo franzir da testa ao entrarmos na frente do seu campo de visão para a tela da televisão durante seu desenho animado favorito, era tudo delicioso de se ver e admirar, na sua pele lisa e brilhante.

Caso estivesse com alguma dor, por exemplo, decorrente de uma infecção urinária, sua expressão aflitiva era clara quando o interno que o examinava colocava a mão no seu ventre. Tão expressiva que, não raro, o desavisado médico neófito falava para o preceptor sem pestanejar: "Marquinhos falou que está com dores no abdômen, professor!". Sem sustos, os docentes já sabiam dessa capacidade do nosso paciente.

Aprendi algumas coisas além de medicina com Marquinhos. Sua limitada expressão era o que ele tinha para contatar o mundo, mas ele não necessitava nada além. Da simplicidade e harmonia entre sua vontade e sua expressão nascia uma beleza calma e exuberante. A aflição que inicialmente sentíamos era exclusivamente nossa, que queríamos embutir-lhe desejos e tarefas que simplesmente não queria e nem delas precisava.

Sentia que dessa harmonia entre querer e mostrar era o solo onde Marquinhos cultivava a sua expressão e sua beleza para o mundo, postas como flores em floreira, ao redor e abaixo das "janelas" dos seus olhos brilhantes.

Alexandre Martin é médico, especialista em acupuntura e com formação em medicina tradicional chinesa e osteopatia

(xan.martin@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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