OPINIÃO

Escolha o que vai ler

11/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Um Brasil que pouco lê, pouco pensa, pouco se desenvolve. É urgente incutir na infância o interesse pela leitura. Essa gratuita mágica suficiente para permitir viagens sem deslocamento, sem pagar por passagem, sem ter de fazer ou desfazer malas e bagagens.

Mas escolher o que se lerá. Constatada a realidade de que não haverá tempo de ler tudo o que se gostaria, selecionar as leituras. Focar aquelas que podem nos transformar. Algo que se lê tem de ser capaz de nos trazer outro ponto de vista, refletir sobre coisas que, até então, não haviam merecido nossa atenção.

Num país em que proliferam obras superficiais, desprovidas de qualquer substância e inúteis, a não ser por um sempre necessário treino de se aprimorar o letramento, é conveniente sinalizar às criaturas de boa vontade, o que elas deveriam procurar quando buscam um livro.

Releio a "Utopia" de Thomas Morus, aquele inglês que nos ensina a ser fortes, corajosos, destemidos e tementes a Deus. O homem poderoso que, entre 17 de abril de 1534 e 6 de julho de 1535, esteve encarcerado na Torre de Londres, sob acusação de haver conspirado contra o Rei. Esse período não foi gasto em lamentações e lamúrias. Ao contrário, redigiu centenas de textos, hoje considerados um dos mais comoventes testemunhos da fidelidade de um ser humano à sua consciência e aos seus princípios.

Vale a pena ler as principais cartas que More escreveu, assim como algumas das respostas recebidas. Decapitado em 1535, só quatrocentos anos depois - 1935 - veio a ser canonizado. Desde então, cresce a sua dimensão e a sua importância para a política, o direito, a religião, a literatura. Homem polifacético, erudito e excelente prosador, considerado o melhor da Inglaterra, verdadeiro fundador da literatura inglesa moderna, sua fama é a de um paradigma de prudência e integridade.

Jonathan Swift, o autor das "Viagens de Gulliver", pouco chegado aos elogios, caracterizou-o como "a pessoa mais virtuosa que este reino jamais produziu". Justamente por isso, as cartas que escreveu quando prisioneiro, merecem atenta leitura. Há muitos escritos de presos. Pense-se em "Memórias do Cárcere", obra póstuma de Graciliano Ramos, recolhido à prisão por pretensa participação na Intentona Comunista de 1935. É comum que esses livros contenham compreensível dose de ressentimento. Thomas More fugiu desse esquema. Seus escritos refletem angústia e temor, a amargura de um homem completamente só no seu sofrimento, mas - simultaneamente - a superação da fraqueza humana pela fé e pela caridade.

Como foi que conseguiu manter-se firme na fé, embora vítima do naufrágio de sua fortuna? Ele próprio vai explicar: "Cristo sabia que muitas pessoas de constituição fraca se encheriam de terror diante do perigo de serem torturadas, e quis dar-lhes ânimo com o exemplo da sua própria dor, da sua própria tristeza, do seu próprio abatimento e medo inigualáveis. Caso contrário, essas pessoas, desanimadas ao compararem o seu próprio estado desfalecido com a intrépida audácia dos mais fortes mártires, poderiam chegar a conceder aquilo que temiam lhes fosse arrebatado pela força. A quem se encontrar nessa situação, é como se o Cristo se servisse da Sua própria agonia para lhe falar de vivíssima voz: "Tem coragem, tu que és débil e frouxo, e não desesperes. Estás atemorizado e triste, abatido pelo cansaço e pelo medo ao tormento. Tem confiança. Eu venci o mundo, e apesar disso sofri muito pelo medo e estava cada vez mais horrorizado à medida que o sofrimento se aproximava. Deixa que o home forte tenha como modelo mártires magnânimos, de grande coragem e presença de espírito; deixa-o encher-se de alegria, imitando-os. Tu, temeroso e enfermiço, toma a Mim como modelo. Desconfiando de ti, espera em Mim".

Extraio esse trecho do livro "Thomas More - a sós, com Deus. Escritos da prisão", traduzido por Roberto Vidal da Silva Martins, cuja leitura só posso recomendar a todos.

José Renato Nalini é reitor de universidade, docente da Pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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