OPINIÃO

Livro ou filme? Fico com ambos

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Entre as tantas perguntas que me aborrecem, uma merece destaque: "você prefere o livro ou o filme?". Antiga, ela segue viva como nunca, em uma nova geração de público e crítica que sente extrema necessidade de traçar comparações. Não é preciso ir muito longe para perceber a falsa discussão por trás do questionamento. Por possuírem linguagens distintas, cinema e literatura não podem ser comparados.

E quando alguém se presta a responder (eu apenas observo, não gasto meus neurônios), há quase uma inclinação natural à escolha da literatura. Na lógica de quem compara, as respostas são sempre as mesmas: o livro dá mais informações, permite compreender melhor algumas personagens, coloca-nos dentro dessas vidas etc.

A linguagem literária pede pela imaginação que a cinematográfica - através de seu autor, o cineasta - luta para tornar visível. Nem sempre é possível. Há casos de livros intransponíveis ao universo material. A arte das imagens depende da ação, da menor à maior: há sempre algo acontecendo com alguma pessoa, em algum lugar.

O material literário, por natureza, oferece-nos o acesso impossível e, às vezes, visualmente intraduzível de vidas interiores, dos sentimentos; em contrapartida, há algo mágico nas imagens que não pode ser descrito em palavras. No cinema, o texto é a base, o ponto de partida, nunca o fim; o texto é o guia, e seguí-lo à risca nem sempre é indicado.

Pensemos em um grande livro. A melhor adaptação de "Crime e Castigo" para o cinema não é exatamente "Crime e Castigo". Em "Pickpocket", Robert Bresson toma apenas algumas situações e elementos da personagem em crise interior que é Raskólnikov. Seu protagonista gasta dias furtando carteiras. Enquanto Dostoievski fatia a alma humana com questionamentos que vão da impressão de força à culpa extrema, Bresson dá-nos, em imagens, instantes e mais instantes de ação e, aos poucos, a alma torturada do homem.

Argumento constante para tentar justificar o uso da literatura no cinema é o recurso da narração em off, ou do narrador invisível, o que, em tese, permite repetir o livro. Tal como a música, o cinema transporta palavras. A experiência de Alain Resnais com os textos de Marguerite Duras em "Hiroshima, Meu Amor" é bom exemplo, o que não diminui a potência das imagens. Ao contrário, seus monólogos interiores amplificam a dor dos amantes em cena.

No cinema, a narração não existe para suplantar ou repetir a imagem. Pode ser um acessório a mais e, se bem utilizado, de grande valia. Em "Laranja Mecânica", filme de Stanley Kubrick que completou 50 anos em 2021, a voz do protagonista, o marginal Alex, nunca é um problema enquanto passeia pelas suas imagens. Vamos ainda mais fundo no seu mundo de horrores e, depois, na correção dada pelo Estado autoritário, que elege Alex sua cobaia.

A adaptação do livro de Anthony Burgess mostra como algumas mudanças em nada atrapalham. Adolescente no livro, no filme Alex torna-se adulto. Outra alteração na estrutura é a retirada do capítulo final de Burgess. Da maneira como termina, a obra-prima de Kubrick deixa uma pergunta sem resposta: Alex está "curado"? Não me arrisquei a respondê-la nem após ler o livro. Minha conclusão é que o filme tem vida própria.

Em "Morte em Veneza", Visconti faz de Gustav von Aschenbach um compositor, não mais o escritor criado por Thomas Mann. Outra mudança interessante está na adaptação para as telas de "A Sangue Frio", de Truman Capote. O diretor e roteirista Richard Brooks suprimiu todas as passagens do livro em que acompanhamos os membros da família Clutter, antes de serem surpreendidos pelos criminosos. Brooks, alinhado à rebeldia e à contracultura dos anos 1960, centrou todas suas forças na jornada dos assassinos. O resultado é brilhante.

Ao contrário do que apregoam os puristas, as mudanças aqui citadas não desrespeitam o material de origem nem seu autor. Adaptar para outra linguagem é um ato de transformação, é entender o que funciona e o que não funciona quando se passa da palavra à imagem. É fazer escolhas e retirar o que não interessa. Ou acrescentar o que funciona.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

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