OPINIÃO

Dois irmãos


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O pai nunca desejou filhos, mas eles chegaram. Eram gêmeos. O mais velho chamava-se Yaqub e o caçula, Omar. Nunca se entenderam e viraram pelo avesso a vida conjugal de seus pais, Halim e Zana. Essa pode ser uma síntese mixuruca de "Dois irmãos", romance de Milton Hatoum. Um drama familiar e tanto, bem maior do que essa simplória redução de seu enredo.

Hatoum percorre a Manaus dos imigrantes e migrantes, ao longo de sete décadas do século passado. O casal de libaneses Halim e Zana se conheceu na capital amazonense nos anos de 1930. Ele veio ao Brasil com um tio que o largou sozinho, adolescente, numa pensão barata. Órfã de mãe, ela aportou ainda criança em Manaus com o pai, Galib, e com ele trabalhou no pequeno restaurante montado pelo viúvo, parada obrigatória dos desterrados de todos os cantos. Zana era cristã e Halim, muçulmano. Casaram-se. Amaram-se loucamente.Ela insistiu para ter filhos e vieram três: os gêmeos e a garota Rânia. Caixeiro viajante da Amazônia, bom de papo, Halim montou lojinha em Manaus. Sempre ligado a Zana, foi amante zeloso e cultivador de sua paixão. Moravam em casa ampla, cujos fundos davam para um cortiço. A vizinhança contava com tipos diversos, tão bem caracterizados pela prosa cativante do autor. Quem nos conta essa história é um narrador e personagem, cujo nome aparece somente no final do romance. Filho de uma empregada e agregada da casa, a indígena Domingas, o narrador convive desde sempre com essa família e sua relação com Halim é das melhores. Também se dá muito bem com a mãe, menina criada num orfanato de freiras e oferecida por elas para trabalhar na casa de Zana.

Conhecemos a rivalidade entre Omar e Yaqub, que o passar dos anos só fez crescer.Sabemos da partida do mais velho para o Líbano, separação que nunca mais reatou o primogênito com seus familiares. E ouvimos as confidências de Halim. Curtidor da vida, o libanês se desencanta com seu lar e com a cidade que se modifica rapidamente. Sem um pingo de esnobismo, Halim é o boa praçaque conversa tanto com o pé-rapado quanto com o cheio de grana.Condena a vida boêmia de Omar e a obsessiva dedicação da mãe pelo caçula parasita e inconsequente. O filho primogênito, engenheiro que mora em São Paulo, quando aparece não vem para apaziguar o ambiente da família. E que família, recheada de interditos e casos parcialmente contados. Como o deRânia, a filha que administra o comércio fundado por Halim. Ou a história de Domingas e do pai do narrador.

O livro foi adaptado para a TV em 2017, em minissérie da Globo. Teve roteiro de Maria Camargo, direção de Luiz Fernando Carvalho e contou com constelação de grandes nomes: Cauã Reymond, os Antônios Fagundes e Calmon, Eliane Giardini, Juliana Paes...

Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952. Lecionou língua e literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas. Passou a se dedicar exclusivamente à carreira de escritor depois que seu livro de estreia, "Relato de um certo Oriente", publicado em 1989, faturou o Prêmio Jabuti de melhor romance. "Dois irmãos", lançado em 2000, também foi finalista do Jabuti.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

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