Opinião

Máquina do tempo

12/07/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Em "A Sombra do Vampiro", filme de 2000, o roteirista Steven Katz imaginou uma história de terror passada no set de filmagem de "Nosferatu", ainda nos anos 1920. Em cena, um filme de terror dentro de outro. O resultado é estranho e tem cenas perturbadoras: seus atores centrais - John Malkovich como o diretor expressionista Friedrich Wilhelm Murnau, Willem Dafoe como o ator Max Schreck - confrontam-se e, cada um à sua maneira, expõem suas loucuras. Em dado momento, são equivalentes: o cineasta e o vampiro.

Sabemos que quase tudo é ficção. Mas no jogo proposto por Katz, com direção de E. Elias Merhige, nunca perdemos de vista a realidade. Porque um filme que conhecemos está sendo feito. Não qualquer filme. Talvez o filme de terror mais influente de todos os tempos, baseado em "Drácula", de Bram Stoker. Schreck não era um vampiro. Murnau certamente não era tão maluco quando Malkovich o fez parecer. Ainda assim, somos tragados à máquina do tempo.

Katz sabia que, a despeito de toda invencionice, seu material tinha um fundo palpável. Há um mistério em torno de Schreck, à frente do monstro de dedos compridos, curvado, rosto pálido, uma figura mefistofélica que serviu bem aos pavores de uma Alemanha anterior à ascensão nazista. O expressionismo é a ante-sala do terror real.

Outros filmes permitem prazeres semelhantes ao de "A Sombra do Vampiro". Em "No Mundo do Cinema", de Peter Bogdanovich, as personagens centrais assistem à primeira sessão de um filme revolucionário para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, "O Nascimento de uma Nação", o épico de D.W. Griffith. Todas ficam emocionadas com o que encontram na tela grande. Depois dessa experiência, nada mais seria o mesmo.

Spike Lee, anos mais tarde, dá uma resposta aos sentimentos do cinéfilo Bogdanovich: o filme de Griffith é nada mais que uma peça para celebrar o racismo. Simples assim. Em "Infiltrado na Klan", membros da organização Ku Klux Klan assistem e vibram durante uma sessão privada de "O Nascimento de uma Nação". Na tela, homens brancos salvam seu território dos negros malvados, em claro alinhamento a um discurso sulista. Para Bogdanovich, o olhar dirige-se ao cinema; para Lee, sobressai-se o aspecto social.

Em outro filme sobre o fazer cinematográfico, "Bom Dia, Babilônia", vemos Griffith em uma sessão de "Cabíria", o épico de Giovanni Pastrone. Não duvidamos que tenha visto o filme. Isso é certo. No entanto, os diretores italianos Paolo e Vittorio Taviani imaginam como teria sido esse momento e, outra vez, mesmo que nas entranhas da ficção, a máquina do tempo funciona perfeitamente. É emocionante ver Griffith assistindo "Cabíria".

Ao que tudo indica, a realização de "Intolerância" não foi uma apenas uma resposta aos ataques que Griffith sofreu após o lançamento de "O Nascimento de uma Nação". Seu filme seguinte, com quatro histórias paralelas, uma delas na Babilônia, era uma tentativa de superar Pastrone. Para tanto, não economizou dinheiro e construiu cenários gigantes.

No filme dos Taviani, vemos em Hollywood uma espécie de Babilônia, fábrica de sonhos na qual nada era impossível e que logo passaria por novas transformações. Do longa-metragem ao som, do som às cores, a indústria sempre abriria caminho às novidades. Parte dessa história está contada justamente em "Babilônia", de Damien Chazelle. Todos esses filmes - com pinceladas de realidade e imaginação - ajudam a entender o que foi o cinema.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; (ramaral@jj.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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