Opinião

O humanismo de Rossellini

12/04/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Algumas das pessoas que aparecem em "Roma, Cidade Aberta" haviam acabado de viver o conflito da guerra na Itália quando o filme foi lançado, em 1945. Seu diretor, Roberto Rossellini, incorporou-as à ficção e deu ao público - boa parte dele acostumado com outro tipo de filme de guerra, em geral o americano - uma injeção de realidade.

Rossellini não inventou o cinema realista. Ao levar as câmeras para a rua, utilizar atores não profissionais e, sobretudo, privilegiar o "fato" ao "plano" - como bem observou André Bazin -, ele evocou, mais do que outros antes dele (como Visconti e seu "Obsessão"), o neorrealismo. Para alguns teóricos, nascia o cinema moderno. A câmera, mais que sugerir, registrava; a construção cinematográfica não apelava a planos ou elementos que conduzissem ao abstrato; privilegiava-se um "realismo representado", um "cinema objetivo".

A despeito da suposta frieza e distanciamento, é um cinema humanista. A Rossellini, como a outros neorrealistas, interessava o homem e seus conflitos. Depois do marco "Roma" viriam mais dois filmes para completar a chamada "Trilogia da Guerra": "Paisà", composto por diferentes episódios, e o extraordinário "Alemanha, Ano Zero", no qual o cineasta registra a vida de um menino alemão que tenta sobreviver à miséria do pós-guerra.

"Roberto Rossellini escancara o mundo com este filme", escreveu Pauline Kael sobre "Roma". E o mundo foi aos pés de Rossellini, que ganhou aplausos, prêmios e até convite para filmar nos Estados Unidos. O neorrealismo era reconhecido como um acontecimento e, sabemos, inspiraria diretores mundo afora - inclusive no Brasil.

Entre os adoradores dos filmes e da proposta de Rossellini estava ninguém menos que a sueca Ingrid Bergman, a atriz mais famosa do cinema hollywoodiano da época. Depois de ver "Roma" e "Paisà", o encantamento foi tamanho que ela escreveu uma carta ao cineasta, apontando o interesse de trabalhar com ele. Encontraram-se nos Estados Unidos e, com o dinheiro levantado para a produção de um longa-metragem, partiram para uma ilha siciliana em torno de um vulcão, na qual fizeram o primeiro filme de uma parceria, "Stromboli".

Foi nessa ilha que se apaixonaram. Rossellini e Bergman desafiaram a moral e os bons costumes da época: ela era casada e tinha uma filha da outra relação. Ele mantinha um caso, ou um namoro, com outra atriz, Anna Magnani (à época, ela fazia outro filme perto de Stromboli, chamado "Vulcano"). Bergman abandonou Hollywood, foi atacada pela comunidade cristã e carola. Eles seguiram juntos, fizeram família e outros filmes.

Entre os melhores, e talvez no topo da filmografia de Rossellini, está "Viagem à Itália", sobre um casal em crise. Bergman contracena com George Sanders. Os estrangeiros viajam por outro país, conhecem sua história, museus, pessoas, enxergam dois corpos cravados na terra, unidos, muitos anos depois de serem atingidos pela lava de um vulcão. Corpos que simbolizam amor e morte, além da história de um povo, estudo do passado.

O cinema de Rossellini continua vivo como reflexo do que somos, um cinema sobre a realidade que nos esmaga e sobre o quanto ainda podemos lutar para escapar quando, por exemplo, estamos presos a uma ilha e ao lado do fogo de um vulcão, cercados por pessoas desalmadas e preconceituosas, ou quando o fascismo bate à porta.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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