Slasher: do manjado ao inesperado

10/11/2022 | Tempo de leitura: 3 min

O sucesso de "X - A Marca da Morte" nada teve de inesperado. O filme de Ti West reúne algumas das características comuns ao subgênero slasher e que o público adora: um grupo de pessoas em local isolado e psicopatas perigosos. Como manda a regra, as vítimas são liberais, aventureiras, jovens - à contramão da América profunda e punitiva personificada nos assassinos vingadores. Em "X", as vítimas realizam um filme pornográfico.

O clima remete-nos a "O Massacre da Serra Elétrica". Como no cultuado filme de Tobe Hooper, uma trupe pega a estrada e termina em uma fazenda distante. A geração anos 1970, época em que "X" é ambientado, encontra o pior do ser humano enquanto a televisão transmite cultos evangélicos e xerifes mal-encarados buscam respostas ao rastro de sangue.

Tudo é manjado. A estética é propositalmente suja. As meninas oferecem-se aos rapazes e sonham em fazer sucesso em Hollywood. O desejo é exalado de corpos mecânicos, já que West é incapaz de lhes dar vida ou emoção. Restam os cortes da carne, as mortes em sequência, além de ataques de um jacaré que vive em uma lagoa próxima - o animal de estimação dos assassinos, a abocanhar a carne humana servida de bandeja.

Se o caminho de West era o da fórmula pronta e se, com tal fórmula, não podia fazer nascer algo grandioso como "Banho de Sangue" (pelo simples fato de não ter o talento do mestre Mario Bava), ao menos, com seu "X", conseguiu parir algo superior e até inesperado: "Pérola", sua prequela, filme ainda inédito no Brasil.

A atriz Mia Goth assume duplo papel: ela é uma das meninas perseguidas e, coberta por maquiagem, a velha assassina em "X"; e de novo a assassina, em sua versão jovem, em "Pérola". A sacada de West foi mudar o tempo e as formas: o tom escuro e desleixado de "X" dá lugar a cores fortes, a movimentos de câmera bem executados e a um falso paraíso perdido - entre milharais a perder de vista e antigos cinemas de rua - em "Pérola".

Dos anos 1970 somos lançados aos anos 1910, ao fim da Primeira Guerra Mundial e ao clima de medo gerado pela Gripe Espanhola. West teve a ideia de escrever a prequela quando estava em quarentena de duas semanas, trancado em um hotel, durante a realização de "X". Ele perguntou a Goth (neta da atriz brasileira Maria Gladys e uma das roteiristas de "Pérola") se aceitaria ficar mais algumas semanas na Nova Zelândia para fazer outro filme, o que foi aceito de pronto pela atriz de face expressiva, entre riso e desespero.

Mesmo imperfeito, "Pérola" tem sequências interessantes, algumas acima da média. Em uma delas, a protagonista faz um teste para ingressar em uma trupe de dançarinas. Seu sonho, como o de Maxine, é ser famosa. Ela dança no palco - embalada por seus delírios - junto de meninas de capacete e maquiagem de palhaço. Ao fundo, fogos de artifício dividem espaço com bombas que explodem em trincheiras. Vemos um pouco do interior e da ilusão da personagem, um pouco dessa época na qual o cinema em seus primórdios já servia de fuga possível à realidade insuportável, em um século que estava só começando.

Ao longo desses dois filmes é difícil driblar as referências. Na decrépita que caça os jovens encontrei a mulher putrefata de "O Iluminado". Na casa afastada com porão e segredos escondidos, "Psicose". Na menina perturbada e perseguida pela mãe, igualmente perturbada, "Carrie, a Estranha". Certamente não para por aí.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (rafaelamaralreis@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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