Palavra: veículo de fraternidade não de ódio

A manipulação religiosa desvirtua os valores do Evangelho

02/10/2022 | Tempo de leitura: 3 min
Dom Arnaldo

A convivência fraterna precisa ser buscada e não se conhece melhor instrumento para isso que a palavra. É claro que ações concretas surtem efeitos e são necessárias, mas mesmo estas devem ser precedidas de palavras. A quadra histórica que vivemos está marcada pelo discurso de ódio - que, ironicamente, reforça a ideia do poder da palavra -, pelo rechaço violento do irmão que pensa diferente, pela forjadura e a disseminação de mentiras. Trata-se de uma guerra fratricida criada em nome da busca pelo poder, que vai arrastando incautos para sua jornada cruel.

A lucidez e a percepção temporal do Papa Francisco captaram o uso recorrente da palavra como veículo de ódio, em substituição ao seu papel como difusora do amor fraterno, como ferramenta de aproximação entre pessoas cujos credos, raças e ideologias são diferentes, mas que se encontram no mesmo patamar diante do amor divino. Somos todos irmãos e como irmãos deveríamos conviver, daí a encíclica papal Fratelli Tutti.

Vê-se o ódio sobrepor-se ao amor, a intolerância derrotar o respeito.

Na Fratelli Tutti, o Papa lembra que São Francisco de Assis "não se envolveu na guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicou o amor de Deus. Ele despertou o sonho de uma sociedade fraterna".

E é da Oração de São Francisco que extraímos a mais contundente mensagem sobre uso da palavra como arma do amor: "Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé. Onde houver erro, que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve a esperança. Onde houver tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz!"

O acirramento dos ânimos comum aos períodos eleitorais não pode nos distanciar da mensagem de fraternidade contida na Fratelli Tutti e no exemplo de abnegação de São Francisco. Tampouco pode nos obnubilar a visão diante das profundas injustiças sociais que nos afligem desde sempre e que, provavelmente, não desaparecerão após o pleito eleitoral, como num passe de mágica.

Os candidatos permanecem no terreno do discurso predominantemente populista e demagógico, sem discutir com profundidade projetos para superação dos graves problemas que afligem nosso povo.

É tarefa cidadã e cristã denunciar essa triste realidade, como fez a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil na Mensagem da CNBB ao Povo Brasileiro sobre o Momento Atual (31/08/2022), por ocasião de sua 59ª Assembleia Geral, em Aparecida.

Não escapa a nós, bispos brasileiros, o impacto destrutivo que a mentira - sob a forma de fakenews- exerce sobre a democracia, bem como a escravização mental de fiéis com fins eleitorais: "É motivo de preocupação a manipulação religiosa e a disseminação de fakenews que têm o poder de desestruturar a harmonia entre pessoas, povos e culturas, colocando em risco a democracia. A manipulação religiosa, protagonizada por políticos e religiosos, desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil. É fundamental um compromisso autêntico com o Evangelho e com a verdade".

Mãos à obra, fratelli, para que a palavra passe a nos unir em Deuse não mais nos dividir!

Dom Arnaldo Carvalheiro Neto é bispo diocesano de Jundiaí

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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