NOSSAS LETRAS

Latim pulverizado

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

‘Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas/E o falso inglês relax dos surfistas/Sejamos imperialistas! Cadê?/(Sejamos imperialistas!)/Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda/E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate/E xeque-mate//Explique-nos, Luanda/Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo/Sejamos o lobo do lobo do homem/Lobo do lobo do lobo do homem//Adoro nomes/Nomes em 'ã'/
De coisas, como 'rã' e 'ímã'/Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã/Nomes de nomes/Como Scarlet Moon de Chevalier/Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé/e Maria da Fé// Flor do Lácio Sambódromo/Lusamérica, Latim em pó/O que quer, o que pode esta língua?’

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“E os milhões e milhões de mortos do passado, nossos antepassados nas estepes da Ucrânia, nas penínsulas da Ibéria e da Itália, nas terras germânicas do centro da Europa, na Arábia, no Magreb, na Sibéria e nesta América, na África toda, inteirinha cortada pela cicatriz dos séculos de escravismo. Todas aquelas pessoas que um dia ergueram as vozes que nos deram o ‘céu’ (indo-europeu) ‘azul’(persa), que nos desejaram ‘axé’(fon), que moldaram o ‘barro’ (ibérico) ou um ‘carro’(celta) de ‘boi’ (latim), aquelas que por ‘azar’ (árabe) atravessaram ‘guerras’(germânico), as mães que nos fizeram ‘pipoca’(tupi) e zelaram por nossos ‘cochilos’ (banto). E migrantes do mundo inteiro que vieram e virão com palavras, sangue, suor e com novas maneiras de alterar, para sempre, essa floração estranhíssima (como todas) do indo-europeu que acabou florescendo em terras tupiniquins e daí quis perfumar o mundo.”

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O primeiro texto pertence à canção ‘Língua’, composição de Caetano Veloso entre as mais buscadas no Spotify. Em outros versos do mesmo poema o baiano inova com os neologismos ‘pátrida, mátrida e fátrida’- tema de vestibular em algum ano deste século. O segundo é de outro Caetano, o Galindo, professor da Universidade Federal do Paraná, linguista, filólogo, tradutor premiado e autor do livro ‘Latim em pó’ (título devidamente creditado a Caetano Veloso), publicado pela Companhia das Letras em 2022. Galindo inspira o leitor falante do português a uma viagem extraordinária que desvela junto com o conhecimento do linguista e o lirismo do artista, nossa história, geografia, sociologia e antropologia. Igual a Veloso, ele nos fala em linguagem perfumada pela ‘última flor do Lacio’, como a chamou Bilac, sobre a pulverização do Latim que deu origem a várias línguas, uma delas o nosso português brasileiro.

Felipe Hirsch, na orelha de ‘Latim em Pó’, explica a gênese do livro a partir de uma peça que ele ‘inventou de desenvolver’ usando canção de Tom Zé, ‘Língua brasileira’ (‘Quando me sorris/Visigoda e celta/Dama culta e bela/Língua de Aviz’): ‘Precisava de alguém com mais razão, conhecimento e, de preferência, um fado dedicado às filologias da vida. Logo Caetano (o Galindo) propôs uma ‘visada não lúcida.’ E a partir daí, foram anos de aprendizado trocado. Do mundo todo, chegaram gravações de voz em meia centena de idiomas. Gente de países como Ucrânia, Irlanda, Itália, Islândia, Alemanha, Espanha, Portugal, Síria, Líbano, Irã, Argélia, Cabo Verde, Angola, Nigéria, Benim, Índia, China, Paraguai e também de quase todas as partes do Brasil. As ondas de voz, os sistemas linguísticos e musicais, seus ritmos e melodias, apareciam toda manhã no meu telefone. Esse trabalho, estreado, deu origem a um disco, um show, um documentário que batizamos ‘Nossa Pátria Está Onde Somos Amados’, uma peça de teatro e, claro, a este livro.”

E que livro extraordinário é este! Composto por 227 páginas, nos seus primeiros capítulos, no total de 19, o autor procura mostrar a gênese do Português europeu, especialmente a partir do Latim. Os demais versam sobre a formação linguística ocorrida em função da construção de um “novo” português, o português brasileiro. Do ponto de vista do autor, sua obra tem intenção de “(…) fundamentalmente expor as etapas do trajeto de formação da língua que nós falamos todos os dias” (p. 23) e, não obstante, “elencar (…) as diferentes tradições, culturas e povos que contribuíram para a formação do nosso idioma” (p. 24). É nítida também a intenção de desmontar ideias retrógradas como a de que ‘ninguém fala certo no Brasil (p. 26)’. 

A leitura de ‘Latim em Pó’ soa deliciosa para quem curte questões ligadas a línguas. A mim ela fez lembrar demais o saudoso professor de Filologia João Alves Pereira Penha, cujas aulas no Curso de Letras da FFCL de Franca (depois Unesp) me estimularam a amar cada vez mais o nosso idioma. Em dezenas de  páginas foi como se  reencontrasse o mestre a nos contar que o Latim Clássico havia mantido sua pureza nas classes nobres, nos altos comandos militares e entre gestores religiosos até o primeiro século antes de Cristo; mas, por ser também a língua dos soldados, dos mercadores e negociantes, dos mais humildes trabalhadores das terras e inclusive da imensa gente escrava vencida nas batalhas e levada a Roma para servir, acabou se miscigenando e se convertendo ao que se denominou Latim Vulgar.

(Um dia o professor João Penha nos fez rir ao contar que Cícero já escrevia que, se ele falasse em sua casa como falava no Senado, ninguém o compreenderia).

Então, dois linguajares bem definidos já coexistiam no primeiro século da Era Comum: o Latim Clássico e o Latim Vulgar. Com o avanço dos exércitos romanos por toda Itália, depois pela Sardenha, Córsega, Espanha e Portugal, o Vulgar interagiu com os dialetos regionais das áreas dominadas, e, com o correr dos séculos, surgiram línguas singulares, denominadas até hoje como Românicas. Foi assim que em terras portuguesas o Latim Vulgar, já bastante diferenciado, deu origem à Língua Portuguesa que seria exportada para países diversos da África e para o nosso Brasil: vinha ela transportada nas caravelas de navegadores, soldados, invasores, conquistadores, alguns jesuítas. Foram eles que plantaram nossa linda língua e ela se movimentou nos últimos cinco séculos, assimilando falares indígenas e africanos, depois imigrantes.  Continua seu movimento de transformação nesse tempo onde a linguagem sofre influência maciça da internet.

Um belo e fecundo passeio pela formação do nosso português, a obra de Galindo nos relata em estilo leve e estimulante como aconteceu o longo processo de estruturação do idioma brasileiro, retrocedendo a influências linguísticas oriundas de uma Europa anterior à Era Comum até chegar ao Brasil contemporâneo. Enfim, registrando fatos históricos, amparando-se em citações, exibindo límpida argumentação, o professor Caetano W. Galindo constrói um livro que busca mostrar, a partir de um reconhecimento idiomático, quem somos nós, brasileiros.

Considero leitura obrigatória para professores, estudantes, escritores e todos os brasileiros que não veem no seu idioma apenas o caráter fático.

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