
“Em agosto nos vemos” é o derradeiro romance escrito pelo colombiano Gabriel Garcia Márquez, Nobel de Literatura 1982. Também conhecido por Gabo, ele morreu aos 87 anos em 17 de abril de 2014. Há cinco anos vivia afastado da vida social em razão de doença que foi paulatinamente apagando sua memória.
A narrativa gira em torno de mulher de gostos sofisticados, versada em literatura e música, que visita anualmente pequena ilha não muito distante do lugar onde vive. Todo dia 16 de agosto ela faz a travessia do mar caribenho num barco de transporte coletivo. Seu objetivo ao deixar o continente é levar ao túmulo da mãe um ramo de gladíolos (pois a defunta não gostava de rosas) e contar-lhe as novidades dos últimos doze meses sobre si e sua família. Esta é composta pelo marido, respeitado professor de música, e dois filhos adultos e anódinos- a jovem que quer entrar para a congregação das carmelitas e o universitário que segue a carreira do pai.
Basta a leitura das primeiras páginas para que o leitor seja informado pelo narrador em terceira pessoa sobre os atributos físicos e psicológicos da protagonista. De modo econômico, característica do enredo de cem páginas, em três frases fica-se sabendo que ela havia herdado da mãe “o esplendor dos olhos dourados, a virtude das poucas palavras e a inteligência para controlar seu temperamento”. Logo aparece seu nome por extenso, inicialmente oculto nas iniciais AMB bordadas no bolso da sua blusa. É Ana Magdalena Bach, curiosamente o mesmo da segunda esposa de Johann Sebastian, o fecundo compositor alemão. Com boa vontade, ao leitor é possível desentranhar aí referência à personagem bíblica Maria de Magdala, mais conhecida por Madalena, uma das primeiras mulheres que seguiram Jesus e de quem ele teria exorcizado alguns demônios.
Linear mas circular, o enunciado mostra as idas e vindas de Ana Magdalena Bach à ilha e as mudanças que sofre quando se aproxima dos cinquenta anos. Sua ansiedade passa então a dialogar com a estrutura narrativa: “Com as primeiras ondas de calor de julho, começou dentro de seu peito um bater de asas de borboleta que não daria trégua até que voltasse para a ilha”. Os sentimentos da mulher parecem seguir os movimentos das marés que ela observa durante sua breve viagem: repetitivos mas nunca os mesmos, parecidos aos dos amantes com quem se relaciona e deixam seu corpo ‘encharcado’ quando, depois de cumprir o ritual que a liga à mãe, pernoita em hotéis turísticos. É quase impossível não lembrar o filme francês ‘Belle de Jour’ de Luís Buñuel ou o brasileiro ‘A Dama do Lotação’, do diretor Neville de Almeida baseado em conto de Nelson Rodrigues. Pode acontecer ao jovem leitor contemporâneo resgatar algumas passagens de ‘Cinquenta Tons de Cinza’, de E. L. James. Abrasada pelo clima caribenho, mas não só, evidentemente, a mulher tem seu humor alterado e, em consequência, seu relacionamento conjugal entra na pauta da íntima reflexão. Até então o marido, bem-sucedido na vida profissional e na doméstica, havia sido o único homem de sua vida. Ao tratar da instituição chamada matrimônio, que tem nas convenções seu eixo mais visível, o escritor retoma nesta última história questionamentos anteriores sobre os limites da individualidade e sobretudo a desorganização dos afetos amorosos, tema comum às suas histórias. No breve prefácio ao livro, os filhos de Gabo, Rodrigo e Gonzalo, sugerem que é o ‘amor, provavelmente, o tema principal de toda a sua obra’. Em texto breve os irmãos explicam que o pai fez cinco versões do romance até então inédito; e apesar de ter dado o seu ‘Ok’ após a quinta versão finalizada, como atesta documento em fac-símile, a história parecia longe de alcançar os momentos consagradores da sua obra. Talvez por isso Gabo tenha chegado a dizer que o romance não prestava e ‘seria melhor queimá-lo’, lembrando assim desejos iguais aos de Kafka, Fitzgerald e Hemingway. A família e editores não atenderam à vontade do autor e assim a obra foi lançada dez anos depois da sua morte, em 81 países. Em apenas três dias vendeu 400 mil exemplares no mundo de língua hispânica. Um espanto. Quem tem fama deita na cama.
Traduzido para o português por Eric Nepomuceno, amigo próximo do escritor, o romance até agora divide opiniões. O leitor que conhece de fato toda a obra do colombiano estranha cenas, descrições e frases que soam como clichês. O próprio tradutor avalia que “o polimento final falhou”.
Penso que muitas coisas falharam, certamente por conta do apagão da memória do autor. Faltou estopo à narrativa que apresenta os filhos da protagonista e depois desiste deles. Faltou um perfil mais robusto da mãe falecida para justificar ações da filha. Faltou desenvolver o caráter do marido. Faltou mergulhar mais profundamente na psique da protagonista para expressar seus desejos. Faltaram o surrealismo de ‘Cem anos de solidão’; o mergulho na condição humana de “O amor nos tempos do cólera’; a carga emocional de ‘Ninguém escreve ao coronel’; o subtexto de ‘Doze contos peregrinos’. Faltou o erótico na dimensão lírica e única concebida por Gabo, como nos acostumamos a ver, por exemplo, em ‘Do amor e outros demônios’. No seu último romance, Gabo apenas esquematizou cenas de sexo mais apropriadas a uma versão cinematográfica.
A insegurança dos editores diante das evidentes fragilidades do texto explica os cuidados que cercaram o lançamento discreto da obra em 2023. Mas a reação positiva do público, percebida nas manifestações pela internet, com certeza levou alívio aos responsáveis. Mesmo com falhas ‘Em agosto nos vemos’ é livro que chegou ao coração de muitos, enternecidos neste nosso ácido século XXI com a melodia de Debussy (Clair de Lune) e os boleros dos anos 60 que, entre taças de gin e champagne, embalam as escapadas de Ana Magdalena Bach. Aliás, a construção desta, é preciso reconhecer, revela um ponto de vista inédito do escritor em relação às mulheres. É nítido que ele estava mudando seu olhar sobre o feminino quando começou a escrever a história. Segundo Nepomuceno, tradutor de outras obras do colombiano, “as personagens femininas dele sempre foram absolutamente marcantes, porém circunstanciais. Apareciam, definiam o enredo, reapareciam, mudavam o rumo da história. Sempre fundamentais mas nunca na linha de frente. Neste livro, essa mulher marcante deixa de ser apenas marcante e passa a ser personagem central”.
À observação percuciente do tradutor, que por si só já leva o romance a desvelar um escritor em movimento, acrescente-se a título de elogio o final inusitado- este sim, marca do gênio. Leiam e descubram.
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Post Scriptum
1. A ‘Nota da Edição Original’, 11 páginas assinadas por Cristóbal Pera e datadas de fevereiro de 2023, ajudam a compreender o custoso último trabalho do escritor.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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