
Celebrado o Natal e no aguardo do Ano Novo, me aconteceu pensar de forma reiterada na fuga da Maria, José e Jesus para o Egito, a fim de escapar da sanha de Herodes 1°, que temendo a vinda do Messias, verdadeiro rei dos judeus conforme anunciado no Velho Testamento, ordenou que se degolassem as crianças com dois anos ou menos, nascidas em seus domínios, a Galileia.
Na antiguidade, os Herodes foram cinco e não apenas um, diga-se de passagem. O que mandou matar as criancinhas teve três filhos e um neto, com o mesmo nome e crueldade. Herodes Antipas, o primogênito, fez decapitar João Batista, o iluminado profeta. Herodes Arquelau, número dois, e Herodes Filipe, três, eram odiados pelos macabeus, que os julgavam usurpadores (Clarice Lispector retirou o nome de Macabeia, a protagonista de “A hora da estrela”, desse episódio).
Por fim, o número quatro, Herodes Agripa, o neto, foi responsável pela morte do apóstolo Tiago e logo depois teve um fim trágico: “foi comido por bichos”, que hoje diríamos bactérias, alojados em seus intestinos. O historiador Tito Flávio Josefo (37dC-100) conta em detalhes essa história. Diz que Agripa, tendo comparecido a uma festa pública vestido com tecido que brilhava aos raios solares, foi recebido como Deus por seus asseclas. Mas tão logo cessaram as ruidosas ovações, sentiu dor forte na barriga e precisou se retirar. Morreu quatro dias depois. A ciência explicaria que ele havia contraído uma infecção bacteriana, fatal à época.
Voltando ao nascimento de Jesus. Para que ele não fosse alcançado pelos assassinos, seus pais empreenderam a longa viagem, segundo Mateus e Lucas. Devem ter percorrido 120 km de deserto, distância entre Belém e a fronteira egípcia. Acredita-se que se demoraram uns vinte dias nesse trajeto, parando em pequenas aldeias. Permaneceram no Egito porque ali se sentiam seguros; Herodes não possuía qualquer jurisdição sobre o lugar.
Só com a morte dele, aos 71 anos, puderam voltar a Nazaré. Supõem historiadores que Jesus tivesse entre três e oito anos. Na terra natal, ele “crescia e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria”, diz um evangelista. Sabe-se pouco sobre sua infância. Depois do retorno à pátria geográfica, ele só reaparecerá na pena de Lucas, que o mostra no templo de Jerusalém, na Festa de Páscoa, assombrando os sábios com seu conhecimento do Velho Testamento. Tinha doze anos. Seriam necessárias mais duas décadas para que seu reaparecimento se cumprisse conforme as escrituras. Aos trinta, caminhava arrebatando pessoas com suas parábolas e frases de impacto.
Uma delas era a antítese do que fizera Herodes. Assim narra Marcos (10,13-16): “ Quando os apóstolos avistaram um grupo de crianças se aproximando de Jesus que pregava, e tentaram afastá-las para que não o incomodassem, ele disse: Deixem as crianças virem a mim. Não as proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu garanto a vocês: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então, Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas”.
Talvez seja importante lembrar como era a infância nessa época. Com exceção dos filhos homens primogênitos, as demais crianças eram desvalorizadas, marginalizadas, não possuíam dignidade. Jesus aproveita o contexto e chama a atenção para a situação discriminatória, elevando-as ao patamar que lhes era devido. A exegese dessa frase já inspirou textos comoventes. De minha parte, penso que quando apreendemos a essência de uma criança, percebemos, entre outras coisas, como elas estão abertas ao novo.
Sejam as de famílias abastadas, sejam as que vivem em extrema pobreza, meninas e meninos estão em geral querendo aprender novas brincadeiras. Com naturalidade e sem medo, elegem o agora; por conta da idade o passado pouco existe em sua memória e o futuro nada significa para elas. Entregam-se ao momento com intensidade, vigor e entusiasmo. Coisa quase impossível aos adultos, a quem Jesus aconselha seguir o exemplo dos pequenos a fim de merecerem o Reino de Deus.
Passaram-se mais de dois mil anos e a situação de milhões de crianças continua igual ou pior que as do tempo em que Jesus andou pela Terra. Novos Herodes surgiram e como no passado eles usam diferentes armas para destruir as que se oponham a seus objetivos. O último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), publicado em março de 2021, revela que ainda existem 152 milhões de crianças e adolescentes vítimas do trabalho infantil. Metade é obrigada a realizar tarefas perigosas que põem em risco sua saúde, segurança e desenvolvimento afetivo. Muitas vivem em contextos de guerra, desastres naturais, economias desastrosas e lutam para sobreviver, fuçando lixos ou trabalhando nas ruas.
“Os novos Herodes dos nossos dias destroem a inocência das crianças sob o peso do trabalho escravo, da prostituição e da exploração, das guerras e da emigração forçada. #RezemosJuntos hoje por estas crianças e defendamo-las. #SantosInocentes.” Foi o que tuitou o Papa Francisco em sua conta @Pontifex na memória litúrgica dos Santos Inocentes celebrada na terça-feira, dia 28, data que lembra as crianças de Belém de até dois anos, mortas pelo Rei Herodes.
Faltou apenas dizer que no Brasil também há um Herodes (e um Queirodes) que impedindo a chegada de vacina anti-Covid às crianças brasileiras, usa-as como bucha de canhão na sua louca luta para sobreviver politicamente. Que em 2022 possamos nos livrar desse homem sem escrúpulos, compaixão, dignidade.
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