
Quando Dostoievski publicou “Diário do Subsolo” tinha acabado de completar 43 anos. Sua vida, até então, fora marcada por tragédias. Com dezessete, órfão de mãe, perdeu o pai violento que odiava, assassinado pelos servos de sua propriedade. A partir de então, as crises de epilepsia que o acometiam desde os sete recrudesceram, segundo alguns biógrafos multiplicadas pelo remorso que o escritor passou a sentir. Ele mesmo escreverá num de seus romances: “Todos os homens desejam a morte do próprio pai”. Tendo ingressado aos 18 anos na Escola de Engenharia Militar de São Petersburgo, apaixona-se pela literatura de Schiller e Hoffmann, Gogol e Pushkin. Forma-se, trabalha dois anos na área, mas abandona o emprego dizendo que “o homem é um mistério e quero penetrar o seu interior”. Publica “Pobre Gente”, mal recebido porque em lugar de expor um país dominado com mãos de ferro pelo Czar Nicolau 1º, o escritor busca “o coração profundo do homem, onde o bem e o mal se enfrentam”. Não se intimida com as críticas e publica “O Sósia”, arquétipo de “Diário do Subsolo”, que só viria à luz em 1864. Antes disso, seria preso por subversão e condenado à morte. Escapando da execução no momento do fuzilamento, foi enviado à Sibéria pra cumprir nove anos em trabalhos forçados. Não se sai ileso disso tudo.
Ao retornar a São Petersburgo, a terra natal, funda a revista “Tempo”, onde sua fé se expressa na adesão a Cristo, que diz preferir, “se for o caso, à própria verdade”. Publica no mesmo ano de 1861 “Humilhados e Ofendidos” e “Recordação da Casa dos Mortos”, a crônica da descida aos infernos que foram seus anos na Sibéria. Durante os dois anos seguintes trabalha no “Diário do Subsolo”, o prólogo dos grandes romances que viriam: “Crime e Castigo (1866); “O Idiota”(1868); “Os Demônios”(1871); “O Adolescente”(1874). E “Os Irmãos Karamazov”(1880), um ano antes de morrer. Formam individualmente e no conjunto uma imensa polifonia, com personagens que são ao mesmo tempo “insetos libidinosos e anjos diante de Deus”.
Não é fácil ler Dostoievski. É pesado e pode ser doloroso, porque o tom é em grande parte sombrio; e os personagens são geralmente atormentados. Mas é importante e necessário fazê-lo se o leitor não se contenta com a racionalidade do “dois mais dois são quatro”, como repete com frequência o protagonista de “Diário do Subsolo”. Comparado ao que fez Shakespeare no teatro com dois séculos de antecedência, o escritor russo levou para o primeiro plano de sua ficção a complexidade dos sentimentos humanos, o que irá impressionar Freud a ponto de o criador da psicanálise eleger “Os Irmãos Karamazov” como “o maior romance já escrito”. Dostoievski não faz concessões ao leitor. Ele vai fundo aos subterrâneos. Se alguém quer começar a lê-lo, deveria escolher “Diário do Subsolo” como ponto de partida. Especialmente nessa edição mais recente da Martin Claret, que tem prefácio de Oleg Almeida, autor da elogiada tradução para o português e de notas esclarecedoras. Traduzido para as línguas latinas como “A Voz Subterrânea”, “Memórias do Subsolo”, “Notas do Subsolo” e “Notas do Subterrâneo”, a obra se divide em duas partes, e até o século passado às vezes era desmembrada, por equívoco dos editores. As duas são interdependentes, embora a primeira (“O subsolo”) seja um intenso monólogo e a segunda (“A respeito da neve molhada”) uma narrativa. Vejamos o que nos mostram.
Em lugar de fazer a síntese da primeira, melhor é transcrever a nota assinada que o escritor coloca na abertura: ”Tanto o autor deste diário quanto o “Diário” em si, são, bem entendido, fictícios. No entanto, as pessoas que escrevem tais diários não apenas podem como devem existir em nossa sociedade, considerando aquelas circunstâncias em que a nossa sociedade se formou de modo geral. Eu queria destacar, tornando-a mais visível para o público, uma das personalidade do nosso passado recente.” Dostoievski se refere a a um dos períodos mais sombrios (1825-1855) da história russa, sob a liderança do czar Nicolau 1º. O texto começa com a frase definidora do protagonista anônimo: “Sou um sujeito doente... Sou um sujeito maldoso. Um cara repulsivo eu sou.” Nas quarenta páginas seguintes o vemos atormentado, desequilibrado, neurótico procurando desvendar seu subterrâneo psíquico num discurso verborrágico que escreve provavelmente num subterrâneo físico, como milhares de outros existentes sob a beleza arquitetônica de São Petersburgo.
Na segunda parte, o narrador, atormentado por sua consciência, retoma fatos de vinte anos. Relembra a forma despótica como interagia com seu criado, Apollon; o jeito cínico como se relacionou com a prostituta Lisa; o despeito no forçado convívio com ex-colegas de escola. Invejoso, ressentido e cruel, alterando complexo de inferioridade e mania de grandeza, ele comenta seus sentimentos : “Era uma tortura martirizadora, uma ininterrupta e insuportável humilhação de pensar (e de sentir, ininterrupta e diretamente) que sou uma mosca nojenta e repugnante- embora a mais inteligente, a mais desenvolvida e a mais nobre, bem entendido!- uma mosca que não para de ceder passagem a todos e que todos andam humilhando e ofendendo.”
Tanto no discurso, amparado às vezes por considerações sociais, quanto no enredo que constrói a segunda parte, a consciência humana é metaforizada por Dostoievski como lugar escuro e escondido, o subsolo, onde o personagem se encontra tão fechado em si mesmo que mal consegue se encontrar, procurando na escrita de seu diário alguma luz. Perturbado consigo, com a realidade circundante, a existência humana e sua própria sanidade, o “homem do subsolo” exibe a face mais sombria de sua alma: “Nas memórias de qualquer pessoa há coisas que esta não revela a todo mundo, mas tão somente aos seus amigos. Há também outras que ela não contará nem aos amigos, mas tão somente a si mesma e de modo secreto. Por fim, há tais coisas que essa pessoa teme revelar até a si própria.”
Essa capacidade para se autoanalisar, que até então não havia aparecido na ficção de nenhuma cultura, surpreendeu leitores e especialmente ficionistas que a partir daí irão criar uma tradição na literatura russa, inspiradora de Kafka, de Camus, de todo romance psicológico que se multiplicará no Ocidente. Por isso, “Diário do Subsolo” é considerado o primeiro romance existencialista da história. Só três décadas depois Sartre escreverá: “A existência precede a essência”, formulando os princípios da filosofia existencialista.
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