
Segurando as mãos de sua avó, aos 8 anos de idade, Luciano Raminelli pisou pela primeira vez em um terreiro de candomblé, na Baixada Santista, para encontrar cura espiritual para problemas de saúde, no caso, crises de epilepsia. Passados 38 anos, aquela criança nascida em Ribeirão Preto (SP), hoje um homem de 46 anos, continua se nutrindo da mesma fé, ou melhor, do mesmo axé (força sagrada) que o sustenta em vida e alma.
Vivendo em Franca desde a década de 80, o chamado para ser um líder religioso, um Babalorixá (o Pai de Santo), da primeira casa de candomblé de nação Ketu de Franca: o Ilê Alaketú Asé Ogiyán Ofururu, localizada no Jardim Portinari, tem sido cumprido. Tanto que teve reconhecido, no último dia 11 de agosto, o título de primeiro terreiro de candomblé de Franca tombado pelo Condephat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico do Município de Franca) como patrimônio de cultura imaterial.
Médico veterinário de profissão, Babalorixá Luciano Ty Ogiyan recorda que já foi perseguido por um delegado de polícia, no início, a ponto de ter que mudar três vezes de bairro para manter os rituais. “Minha casa já foi apedrejada, fui chamado de bruxo. Não sou isso. Meu crime (para o delegado) era cultuar nosso sagrado, com negros e com gente de periferia. Mas, logo que ele me libertava, eu começava de novo”.
O que é o candomblé?
É uma religião vinda da África, aonde se mantêm ritos, danças e idiomas próprios. A religião tem como características danças, dialetos e também é engrandecido pela culinária peculiar de cada vertente.
E a umbanda?
É uma religião brasileira formada a partir da mistura de elementos do candomblé, catolicismo e também do kardecismo. Por exemplo, o negro tinha que manter viva a sua cultura, mas o senhor do engenho não ia permitir que ele cultuasse a cultura dele. O que ele fazia? Pegava elementos que representam Iansã e achavam um santo católico que tinha uma história semelhante. Como se assemelham Iemanjá a Nossa Senhora, por exemplo. E quando tinha festa no terreiro, chamamos de terreiro porque era o terreiro da casa grande, eles liberavam cachaça e comida. Aí, nesta hora, eles faziam o candomblé, a capoeira e todas as culturas do seu povo.
Qual a diferença entre o candomblé, a umbanda e o kardecista?
Tanto a umbanda e o kardecismo são cristãos, colocam Jesus Cristo como ápice da sua religião. Nós, do candomblé, somos pagãos. Jesus Cristo não se enquadrou nos nossos ritos. Eu particularmente acredito (em Jesus Cristo), mas dentro da fé que eu pratico, ele não se enquadrou.
Qualquer pessoa pode praticar o candomblé?
Falo que no candomblé existem dois chamados: você como filho da casa, ou filho de um orixá (divindades cultuadas nas religiões de matrizes africanas), em qualquer parte do mundo aonde ele se enquadra pra nascer, ele é chamado para aquilo, é uma vocação. O candomblé é para todos, mas nem todos são para o candomblé.
Como é ser um Pai de Santo?
É muita responsabilidade e um fardo pesado. Mas sou muito feliz em ser Pai de Santo. Apesar que, no começo, eu não queria ser. Por que você deixa a sua vida, para viver a dos outros. É uma doação muito grande.
Por ser branco e líder de uma religião iniciada pelos negros, você já sofreu algum tipo de perseguição, impedimento ou preconceito?
Costumo dizer que sou branco, mas a minha alma é negra, por que os meus deuses são negros.
Por que as pessoas acreditam que o candomblé prega algo do mal?
Porque, infelizmente, existem pessoas que não são do candomblé, que não são da umbanda e tem uma visão mesmo destas coisas diabólicas. e assustam outras pessoas sem conhecimento do assunto. Estamos em 2018, em pleno século 21, e o povo acredita que sou bruxo, o demônio, ou satanista. A gente nem acredita em diabo. O diabo não é nosso. É do cristão. Nós acreditamos nestas forças: positiva e negativa. A água mata sua sede e te mata afogado, quem tem que saber dosar é você.
Como combater a intolerância religiosa em relação às religiões de matrizes africanas?
Acredito em Exu, exu é o comunicativo entre nós, que faz as coisas acontecerem e em vocês (meios de comunicação). Vocês são os novos ‘abres caminhos’. Essa é a nossa esperança. Porque quando a pessoa faz comentários sem conhecimentos é ignorância. E pra combater a ignorância é só aprendendo, descobrindo através de conhecimento. Estamos tentando desmistificar mostrando coisas que muita gente não sabe que existe dentro da religião.
Alguma vez você pensou em desistir?
Uma vez ele (o delegado de polícia, nos anos 80) me ameaçou. Ele falou: ‘vou te colocar na cadeia, custe o que custar’. Saí fora da jurisdição dele. Se ele quisesse me condenar com alguma coisa, acho que ele conseguiria. Aí mudei e fui para o Centro da cidade. Neste período foi tranquilo. Só saímos de lá por conta do valor do aluguel e porque o candomblé é da comunidade, é da periferia. Fui para o Moreira Júnior e, depois, em 2000, pro Portinari.
Qual sua opinião sobre grupos que são contra o abate de animais durante rituais religiosos, alegando maus-tratos e magia negra?
Em toda casa de candomblé há sacrifício de animais. Só que todo o animal sacrificado é sagrado. Ele tem que ser consumido pela comunidade. Nós rezamos para matar.
Você se preocupou com isso a partir da sua formação como médico veterinário?
Não. A preocupação já vem com os fundamentos da religião. Posso falar que tudo isso é muita intolerância religiosa. Posso falar com conhecimento de causa porque sou médico veterinário. Me formei para animais de produção. Eles falam da crueldade. Não tem sofrimento por que os animais são dessensibilizados. Eles não sentem. Cortou a cabeça, o animal não sente dor. Tem processo de fazer os abates, as oferendas. Não existe dor, não existe sofrimento, os animais são bem tratados e a carne serve para alimentação da comunidade.
O que é preciso fazer para participar de uma casa de candomblé?
Procurar um Babalorixá (o Pai de Santo), fazer um jogo de búzios e começar a frequentar essa casa para ele ir assimilando, para ver se é isto que é o horizonte dele, se ele vai encontrar nesta religião o que procura. Aí depois ele vai passar por um processo de iniciação, vai ficar recolhido em um quarto, por determinados dias, vai raspar a cabeça, passar por uma série de rituais para ser iniciado.
Nesta religião, “se não vier pelo amor, vem pela dor”?
Não acredito que orixá seja dor. Mas, às vezes a pessoa está sofrendo tanto lá fora por buscar algo que não é dela, aí chega aqui e faz um encontro. O candomblé é aberto para qualquer pessoa, independente de cor, classe social, credo ou gênero sexual. O candomblé é uma religião de inclusão. Quando a pessoa chega, ela pode ser o que ela é. Não precisa fazer uma inversão de valores, ou se purificar, não precisa se doutrinar. Ela tem que aprender a ter respeito, respeitar as pessoas. O candomblé é uma grande família. Aonde se tem o pai, filhos, tios, sobrinhos, avôs, netos, bisnetos, mas, é uma coisa ainda melhor. Por que é uma família que você escolhe.
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