
O dia 26 de fevereiro de 2015 encerrou a vida de Adriano Henrique Jardim Ramos, de 5 anos. Naquela quinta-feira, o menino foi espancado durante horas pela mãe, Jane Aparecida Jardim, de 27 anos. A tragédia teve espaço na Fazenda São José, em Cristais Paulista, onde ele morava com o irmão mais velho, de 11 anos, a mãe, o padrasto e o meio irmão de 2 anos. Foi sua última surra. Ele morreu naquela noite, mas sua morte só foi confirmado pelos médicos no dia seguinte. O caso chocou a população de Franca e região e comoveu até policiais com décadas de carreira. É impossível entender como uma mãe é capaz de tirar a vida do próprio filho com surras violentas, nem mesmo voltando no tempo e mergulhando numa história recheada de traições, drogas e violência.
Adriano nasceu no dia 21 de setembro de 2010, em Campinas, a 100 km da capital. Não foi uma gravidez planejada. Seus pais, Jane Aparecida Jardim e Reginaldo Ramos, hoje com 28 anos, viviam em uma edícula no quintal da casa do pai de Reginaldo, na periferia de Campinas. Estavam casados havia sete anos.
O casal se conheceu em uma festa em meados de 2002. Foi amor à primeira vista. Meses depois, Jane, então aos 14 anos, já estava grávida de seu primeiro filho e morando com Reginaldo, que se esforçava para conseguir dinheiro trabalhando como pintor a fim de sustentar a família.
Imaturo, o casal vivia às turras. As brigas eram frequentes e normalmente provocadas pelo ciúme de Jane. Nestas ocasiões, Reginaldo era sempre quem procurava a reconciliação. Não foram raras as vezes em que Jane passou uns dias na casa da mãe, Maria José Jardim, no bairro Campina Grande.
Primeiros sinais
Nesta época, Jane já dava mostras da pouca paciência que tinha. “Ela vinha para cá com o menino ainda pequeno, tirando as fraldas. Sempre que ele fazia cocô nas calças eram surras que me deixavam atordoada. Eu intervinha para ela não machucar o menino”, conta Maria José. Como Reginaldo sempre cedia, não demorava para Jane e o filho voltarem para casa. “Numa das vezes, fiquei preocupada com o jeito que ela tratava o filho e pedi que meu outro filho fosse morar com eles um tempo. Ele conta que, para evitar de ela bater no moleque, ele mesmo o limpava tudo para que ela não percebesse nada”.
A separação
Quando Adriano nasceu, Reginaldo já estava cansado das brigas constantes. Não passava mais tanto tempo em casa e preferia sair com amigos a ficar com os meninos. Em uma dessas saídas, conheceu Andrea Marques, 33 anos. Se encantou.
Andrea conta que, a princípio, eram apenas amigos. “Eu sabia que ele era casado. Ele vinha aqui em casa para desabafar. Falava sobre a situação com a mulher, as dificuldades financeiras e a carência que sentia”. Logo, a amizade virou romance e os dois acabaram se envolvendo. “Nos apaixonamos”.
Andrea já tinha três filhos e morava no Conjunto Habitacional da CDHU, no Bairro Matão, também na periferia de Campinas. Ela o pressionou. “Eu não queria ser a outra. Se ele me amava como dizia, tinha que resolver essa situação”, cobrou Andrea.
Reginaldo tomou coragem e, no começo de 2011, saiu de casa com suas coisas. Deixou Jane e os dois meninos na edícula com a supervisão de seus pais e irmãs.
Jane não aceitou a separação. Sentindo-se traída, proibiu Reginaldo de ver os dois filhos, no que foi apoiada pela família do agora ex-marido.
Distante dos filhos e sem contato com a família, Reginaldo não aguentou e, mais uma vez, voltou para casa. Ele tinha esperança de que as coisas fossem mudar. Não mudaram. Depois da traição, o ciúmes de Jane ficou ainda pior. Ela brigava por qualquer coisa. Era violenta. E de novo Reginaldo a deixou para morar com Andrea. Desta vez para não mais voltar.
O abandono
Por meses, Jane o infernizou. Ligava xingando, proibia os filhos de falar com o pai, ameaçava. Até que se cansou. Em meados de 2011, decidiu cuidar de sua própria vida. Queria sair, conhecer pessoas, recuperar a “juventude perdida” nos quase oito anos de casamento.
Cuidar de dois filhos com idades de 1 e 8 anos não combinava com essa nova vida. Ela passeava sozinha. Deixava o mais velho cuidando do pequeno e saía para curtir a noite em Campinas. Ia a bailões de forró, boates e bares. Bebia e só voltava no dia seguinte. Quando voltava.
Não demorou para se envolver com drogas. Também começou a trazer estranhos para a casa que dividia com os filhos. Até que a família de Reginaldo resolveu dar um basta e expulsou Jane da edícula, mas não permitiu que ela levasse as crianças.
Sem conseguir cuidar dos dois sobrinhos, as irmãs de Reginaldo resolvem procurá-lo. “Elas o chamaram e disseram que se ele não fosse buscar as crianças, elas iriam levá-las para o Conselho Tutelar a fim de que pudessem ser adotadas”, conta Andrea.
De volta ao pai
Sem outra alternativa, Reginaldo levou os dois filhos para morar na casa da madrasta. “Éramos sete. Meus três filhos, os dois filhos de Reginaldo e nós dois em um apartamento pequeno. Mas eu os acolhi como se fossem meus”, conta Andrea. Foi ela quem ensinou Adriano a andar, quem tirou suas fraldas e ouviu suas primeiras palavras. Era a ela que ele chamava de mãe. “Aqui ele era muito feliz. Era um menino como outro qualquer. Brincava com os amigos, era animado, alegre. Mas também era danado. Muito ativo.”
Andrea aceitou cuidar dos meninos mas impôs uma condição: que eles não vissem a mãe. Jane foi proibida de fazer visitas ou manter contato com as crianças. Não discutiu. Ela foi morar na rua. “Perdemos totalmente o contato. Por meses, não ouvi falar sobre ela. Não tinha notícias. Só ouvia falar que ela estava drogada pela rua”, conta Maria José, mãe de Jane.
O primeiro contato só ocorreu seis meses depois. “Ela me ligou e disse que estava em uma casa para drogados em Hortolândia, que tinha conhecido um rapaz chamado Tiago (Rodrigues) em um parque de diversões e estava apaixonada”, esclareceu Maria José. Jane não pretendia voltar. Pelo contrário. Caiu no mundo com seu novo companheiro.
Para a mãe, ela contou que Tiago não tinha emprego fixo, vivia de bicos. Costumava beber, mas a tratava bem.
O segundo contato veio dois meses depois. Ela estava em Belo Horizonte. “Disse que tinha ido para Minas conhecer o sogro e que iria morar por lá. Não quis me dar o número de seu telefone. Perguntou dos filhos e desligou”, revelou Andrea.
Depois de meses, a mãe de Jane foi avisada por um albergue em Goiânia que a filha tinha dado à luz um menino. “O filho menor dela nasceu em um albergue. Ela e o Tiago moravam na rua. Ela queria dinheiro, mas eu não tinha como ajudar”, disse Maria José.
Por um tempo, Jane ficou desaparecida. Enquanto isso, seus filhos levavam uma vida normal em Campinas, com a madrasta e o pai. Iam à escola e a creche. Se divertiam em passeios pelo shopping da cidade e faziam a maior festa em seus aniversários. “O Adriano adorava cantar parabéns. Sempre tinha que ter bolo para ele”, lembrou Andrea.
O reencontro
Foi em abril do ano passado que Jane reapareceu. “Ela me ligou. Pediu desculpas pelo sumiço e disse que agora estava sóbria e queria muito ver os filhos”, conta Maria José.
Nos primeiros telefonemas, a mãe de Jane nem levou o pedido adiante. Mas aos poucos a filha a convenceu da saudade dos meninos. “Ela sempre ligava, chorava. Achei que realmente ela queria vê-los e falei com o Reginaldo a respeito. Ele não deixou”.
Jane, então, começou a visitar a mãe. “Ela vinha, trazia o menino menor. Me parecia bem”. Nestas visitas, Jane convenceu a família de Reginaldo a levar seus filhos para vê-la, escondido do pai. “Eles vinham sem o Reginaldo saber. O Adriano não a reconhecia. Era uma estranha para ele”, lembra Maria José.
Foram pelo menos três visitas até que, segundo Maria José, o pai das crianças resolveu devolvê-las a Jane. “Ele disse que a mulher dele não podia mais olhar os meninos e que eles estavam com dificuldades financeiras. E me pediu para ver se a Jane não poderia vir buscá-los”, afirmou Maria José.
Andrea nega. Diz que, na verdade, teria sido Jane a pedir a guarda dos filhos. “Ela disse que sentia falta dos meninos, que estava arrependida e livre das drogas. Morava em uma fazenda e queria os meninos com ela”, contou Andrea.
A mudança
O fato é que, em setembro do ano passado, na primeira semana, Jane e o marido Tiago foram a Campinas buscar os meninos. “O Reginaldo entregou eles aqui cedinho. Nem tinha acertado nada com a Jane e já deixou os meninos. O Adriano não queria ficar. Só chorou. Mas mesmo assim ele deixou os garotos e foi embora”, disse Maria José. Reginaldo não sabia para onde os filhos seriam levados, não pediu endereço ou telefone.
Segundo C., de 11 anos, filho mais velho de Jane, os primeiros dias na fazenda foram bons. “A gente passeou, brincou. Mas logo começaram as brigas”. A princípio, as discussões se restringiam ao casal. “A Jane tinha muito ciúmes de mim. Não gostava que eu saísse e sempre discutia. Às vezes até me tacava alguma coisa”, disse Tiago Rodrigues.
Não demorou para que os meninos também começassem a ser agredidos. “Primeiro o Tiago me colocou para arrancar mato em uma horta durante a noite. Depois, ele começou a me mandar fazer trabalhos de carregar tronco ou sacos de esterco”, conta C.
Adriano, aos 5 anos, era o responsável pelo meio irmão de 2. “Era o Adriano que cuidava dele. Se ele chorava por qualquer motivo, o Adriano apanhava”, conta C. O menino costumava morder Adriano. “Ele não podia reagir, pois apanhava também”, disse C. As surras, segundo a própria Jane contou à polícia, eram sempre com uma vara de goiabeira, cinta ou vassoura. “Depende do que estava mais perto”, contou Jane à polícia. Ela batia até deixar marcas. “Ele chorava e eu sentia muita raiva”, disse a mãe.
A primeira fazenda em que os meninos moraram fica próxima à Igreja São José, na região da Borda da Mata. Foi de lá que partiu a primeira denúncia feita ao Conselho Tutelar de Cristais Paulista, em novembro do ano passado, apenas dois meses depois de os meninos terem se mudado. Um dos vizinhos, inconformado com as surras constantes, ligou para o Conselho e denunciou o casal.
No dia seguinte, a conselheira Cristina (ela se recusou a fornecer o sobrenome) foi até a casa da família. Segundo o garoto C., ela não examinou as crianças, apenas perguntou se estavam bem. “A gente estava na frente da minha mãe. Eu disse que sim. Se dissesse não, minha mãe falou que eu iria apanhar”, afirmou C. Depois de questionar as crianças, Cristina teria conversado com Jane e Tiago. “Ela disse que a gente não podia bater, que era para termos paciência. Disse que ela iria nos ajudar e perguntou se precisávamos de alguma coisa. Depois mandou umas cestas básicas”, disse Tiago. A visita não assustou o casal. As surras continuaram. “O Adriano, coitadinho, apanhava todo dia”, disse C.
Em dezembro do ano passado, Tiago trocou de emprego. A família se mudou para a Fazenda São José. Lá, as agressões pioraram. “O Tiago bebia e batia na gente. O Adriano era o que mais apanhava. Ele não gostava da gente porque não era filho dele”, contou C.
Jane, em uma dessas surras, teria discutido com o marido. “Ela me ligou contando que tinha brigado com o Tiago por causa dos meninos. Ele queria que o pai pagasse pensão. Como o Reginaldo não pagava nada, ele fazia eles trabalharem. Ele dizia que não ia sustentar filho de vagabundo””, disse a mãe de Jane. Mas C. conta que Jane nunca contrariava o marido: “Ela via ele batendo na gente e não fazia nada. Até ajudava”.
O próprio Tiago admitiu para a polícia que obrigou Adriano a comer as próprias fezes. “Ele tinha feito cocô nas calças e espalhado pela casa. Estava fedendo muito. Então, o obriguei a comer a merda”.
Tiago não tinha a menor paciência com Adriano, seu alvo preferido. Ele narrou à polícia que um dia, no jantar , Adriano estava comendo muito devagar. Ele então o obrigou a comer depressa. O menino acabou vomitando. Foi obrigado a comer o vômito.
Como na casa anterior, um vizinho decidiu denunciar o casal. Mais uma vez, a conselheira Cristina foi visitar a família. “Dessa vez, ela viu as marcas no corpo do Adriano. Mas minha mãe disse que ele tinha caído e se machucado. Ela acreditou e ficou por isso mesmo. No Natal ,ainda veio trazer uma cesta para minha mãe”, contou C. O menino nunca se conformou com a situação. Não suportava ver o irmão apanhar e ser judiado. “Nestas horas, ele chorava muito. Chamava pelo meu pai. Eu queria ajudar, mas não podia. Eles batiam em mim também. Então, corria para o quintal para não ouvir ele gritar”, afirmou C.
Muitas vezes, os dois arquitetavam maneiras de entrar em contato com o pai em Campinas. “A Jane não deixava a gente usar o celular para falar com o meu pai. Quando ela ligava e colocava a gente para falar, ficava do lado para que não contássemos nada”, revelou C.
Na escola, C. contou a história para sua primeira professora, mas ela não deu atenção as suas queixas. “Eu falei, mas não adiantou nada”, disse C.
Sem conseguir escapar, C. começou a dar problemas. Respondia, não obedecia e na escola passou a ser agressivo com os colegas. Em uma das ocasiões, chegou a levar uma faca na mochila. “Eu dei trabalho porque queria voltar para casa do meu pai”, admitiu o menino. No começo de fevereiro, Jane ligou para a mãe avisando que iria devolver os meninos. “Ela disse que o C. estava dando trabalho, que o pai não pagava pensão e que o Tiago não queria mais os meninos, contou Maria José.
Andrea confirma: “A dona Maria José ligou para a gente falando que ela ia devolver os meninos. Estávamos nos organizando para recebê-los de volta. Mas aí a Jane desistiu de entregá-los”. A madrasta conta que a desistência teria ocorrido dias antes do último espancamento de Adriano. À mãe, Jane disse que conversou com os filhos e que estava tudo bem.
Depois do crime
Na manhã de sexta-feira, um dia depois do espancamento, C. ligou para Andrea pedindo socorro. “Ele tinha fugido da casa do padrasto. Cedo, antes do Tiago acordar, ele pegou o celular da Jane, levou para a professora da escola e pediu para ela me ligar. Quase morri do coração quando me disse o que tinha acontecido”, contou Andrea.
C. narrou tudo o que havia acontecido com Adriano na quinta-feira. Disse que a mãe estava presa. Ele queria que o pai fosse buscá- lo. Estava desesperado por ter de ficar sozinho com o padrasto, que sempre batia nele.
Reginaldo e Andrea conseguiram um carro emprestado e saíram de Campinas para Cristais no início da tarde da sexta-feira. Chegaram a Cristais à noite. “Fomos buscá-lo na escola. A professora e a diretora ficaram esperando a gente chegar”, afirmou Andrea.
C. contou para o pai que o irmão estava internado em estado grave na Santa Casa. Eles visitaram o menino no hospital e foram até a delegacia saber a situação de Jane. Depois, eles decidiram voltar para Campinas com C. Para ele, foi o fim de um martírio. “Estou aliviado. Sei que não terei meu irmão de volta. Mas agora ninguém bate em mim”. Adriano teve morte cerebral. Seus órgãos foram doados e seu corpo enterrado em Campinas.
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