
Contos Proibidos do Marquês de Sade, filme escolhido para discutirmos no Cinema e Psicanálise, nos remete ao drama vivenciado pelo escritor que teve sua vida e obras censuradas durante a maior parte de sua vida. Tendo nascido em 1740, ele começa a escrever em 1778, em uma de suas prisões. A partir daí foi considerado pelo Estado e a Igreja de sua época um escritor maldito e sempre censurado por seu comportamento e literatura - considerada contrária à moral e à religião. Atualmente, diante de uma nova realidade e de novos costumes, a trilogia Cinquenta Tons de Cinza de E.L.James se torna objeto de desejo e bem aceita inclusive no meio juvenil. Por esta razão, torna-se fundamental conhecermos o contexto histórico da época em que Sade viveu, pois a cultura de então é que determinou sua segregação em prisões e asilo de loucos.
O nome do Marquês de Sade está ligado inexoravelmente ao termo ‘sadismo’, que explica o prazer obtido com o sofrimento do outro. Preso em diversas masmorras desde a idade de 23 anos, ele foi considerado um criminoso por juristas, um louco por cientistas da época, e pela sociedade burguesa, não palatável. Apesar de conhecermos a crueldade que existe no humano desde os primórdios da civilização, quem ousa revelá-la, como Sade fez, descrevendo-a em sua intimidade, fica como se fosse o criador do que sempre existiu e sempre existirá.
O filme, realizado pelo diretor Philip Kaufman, é baseado no roteiro escrito para teatro por Dough Wright que foi ganhador do prêmio de melhor peça americana pelo National Arts Club. Os dois juntos, usando de licença poética, se atrevem a imaginar os últimos dias do Marquês de Sade no asilo para loucos de Charenton e criam, desta forma, uma história onde a liberdade de expressão entra em luta contra a repressão.
Sade, em sua cela, tem como melhores companheiros seus personagens. Suas penas (Quills -nome do filme em inglês), a tinta e o papel, lhe são indispensáveis, pois servem como meios de expressão de suas ideias bem como de tentativa de encontrar certa organização em sua mente. A busca de sentido para sua existência, de resgate do humano em si mesmo, leva-o a escrever contos e manuais que subvertem a moral e a ética de então. No entanto, o personagem cruel do dr. Royer Collard, enviado por Napoleão para dominar os instintos de Sade, acaba por retirar-lhe até mesmo suas preciosas penas, seu papel e a tinta. Em sua defesa, ele afirma em determinado momento do filme: “Eu não faço nada acontecer! Eu apenas descrevo o que acontece: eu sirvo apenas de espelho”.
Neste asilo onde Sade vive seus últimos dias, já velho, aparece como personagem importante relacionando-se com ele a doce Madeleine, filha da lavadeira de roupas do local, que é quem permite que os contos sejam levados à publicação. Ela se diverte com seus contos, e por ter aprendido a ler com o abade Coulmier, os lê para os demais. O abade Coulmier é o personagem que faz contraponto com o marquês na luta pelo Bem. O abade mantém diálogos bastante interessantes com o marquês, na tentativa de mostrar-lhe que o Bem existe no ser humano, e que vencerá o Mal. Sade, com um ódio explosivo do ser humano, não se deixa convencer.
Enquanto alguns trechos dos escritos de Sade são lidos por um ou outro personagem, vamos descobrindo que o erótico em Sade não existe, ou melhor dizendo, o que ele mostra em seus escritos, é uma sexualidade auto-erótica, pois ele descreve cenas em que apesar das pessoas estarem em relação sexual, elas apenas pensam no prazer sensorial por si mesmo, mostrando-se em uma relação vazia de amor, de consideração um pelo outro. Os personagens apenas utilizam o outro para seu próprio prazer e isto nos revela seu ódio ao outro, que parece não existir. O erótico em nós é construído na relação com o outro. É em nosso ambiente familiar, pelas presenças das pessoas que nos que dão desde cedo amor, confiança e segurança. Sem relação com o outro não há possibilidade de existir o erótico que pertence à nossa imaginação e começa a existir pela presença de alguém ao nosso lado. Uma das cenas em que sua denúncia sobre a ausência de cuidado com o outro aparece claramente é na representação teatral da maneira como o dr. Royer Collard se apossa de Simone como se ela fosse um objeto com direito a usá-la como lhe aprouver. Este personagem é o mais cruel e perverso no roteiro criado. Ele se diverte com seu poder de castigar seus pacientes, com métodos realmente violentos.
Por esta razão, penso que este é um filme que nos traz a possibilidade de refletirmos e conversarmos sobre a violência em nossos dias em seus vários aspectos. Desde o encantamento das crianças por heróis e vilões cada vez mais poderosos, aos mártires que continuam se explodindo e matando pessoas em nome de uma crença, à aderência à maldade de vilãs de novelas pelas pessoas em geral. A confusão entre o Bem e o Mal através da inversão de valores faz com que muitos caiam em tendências a serem violentos, até em relacionamentos chamados de amorosos. O essencial é podermos perceber que este antagonismo entre bem e mal existe dentro de cada um de nós e que por esta e outras razões é impossível pensarmos em um ser humano perfeito, ou em um mundo ordenado. Sabemos apenas que em algum momento, tanto o que é do bem quanto o que é do mal, sendo excessivo, transborda e o que temos visto em nossa sociedade são transbordamentos de diferentes expressões das emoções humanas e em diversos campos de atuação do homem. Isto pode nos levar a refletir sobre a psicanálise e a arte como formas de auxiliar a conter o que “derrama” por não encontrar lugar para se acomodar em nossas mentes. Daí a importância de podermos pensar, sonhar, como oposição a agir, atuar. E isto só nos é possível se conseguimos construir vínculos, entre o Bem e o Mal, que dissimulamos bem, mas que existem dentro de todos nós.
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