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'O sono é importante porque limpa o cérebro'

da Redação
| Tempo de leitura: 6 min

O neurocientista norueguês Edvard Moser, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de medicina em 2014, diz se sentir otimista com o futuro dos tratamentos para o Alzheimer. Isso porque a área da neurociência que estuda a localização, o tempo e a memória, áreas primordialmente afetadas pela doença, tem avançado a largos passos.

No laboratório de Moser (que pesquisa exatamente essa parte do cérebro), por exemplo, novos equipamentos permitem a análise de milhares de células de uma única vez e, desse modo, ajudam a compreender seus mecanismos e interações.

Moser esteve em São Paulo  para uma palestra com estudantes. A visita é parte da Nobel Prize Inspiration Initiative, uma parceria da farmacêutica Astrazenca com a Nobel Prize Outreach. Antes de desembarcar no Brasil, ele falou com a reportagem sobre suas preocupações com a crise de confiança na ciência, o futuro do tratamento do Alzheimer e como cuidar de nossos cérebros.

Pergunta: Qual seu foco agora como cientista?

Edvard Moser: Meu trabalho ao longo dos últimos anos tem sido focado no sistema de navegação do cérebro, que mostra como sabemos onde estamos e encontramos os caminhos. Descobrimos que existem certos tipos de células no cérebro que são essenciais para codificar a nossa própria localização. Especialmente as "grid cells" (do inglês, células de grade) que funcionam como um GPS, permitindo que o cérebro atualize sua posição. Esse foi o trabalho que fizemos de 2000 até 2020. Atualmente, porém, tivemos uma mudança bem grande no nosso foco. Continuamos estudando os mecanismos de navegação, mas passamos a pesquisar enormes populações de milhares de células, no lugar de uma célula por vez. É como estudar comportamentos humanos e em vez de avaliar uma pessoa por vez, passássemos a analisar toda a comunidade. E, como sabemos, as comunidades se comportam de forma diferente da soma dos indivíduos.

P: Quais tecnologias tornam isso possível?

Moser: São basicamente duas novas maneiras de estudar uma grande população de células. A primeira são as sondas de silício, que são circuitos elétricos muito pequenos, menores que um fio de cabelo, longos e finos, que podem ser colocados no cérebro. São tão pequenos que não danificam as células e é possível captar a atividade celular apenas com a sonda entre elas. E a outra abordagem é que existem (novos) microscópios que permitem ver as mudanças na atividade de milhares de células ao mesmo tempo. Claro, depois disso você passa a ter muitos dados (captados por esses apetrechos). E para ver padrões nessas informações, é preciso usar novas abordagens estatísticas. A inteligência artificial também pode ser usada para extrair padrões disso.

P: Há diversos vídeos na internet de pessoas esbarrando em paredes, caindo porque estão distraídas com o celular. Estamos fazendo mau uso das nossas células de localização?

Moser: Acho que o funcionamento do nosso cérebro depende do quanto o usamos. Em certo sentido, acho que você está certa. Uma grande mudança, por exemplo, nos últimos anos é que, quando se trata de navegação, todos usamos GPS. E muitas vezes não navegamos mais de maneira "normal". E houve muito debate sobre se isso afeta nossas habilidades de localização. Acho que sim, da mesma forma que, se você pensar no oposto, quando alguém navega ativamente, como pessoas que competem em florestas ou caminhando em montanhas, elas desenvolvem essas habilidades porque usam esse sentido, prestam atenção aos marcos certos e conseguem calcular o caminho.

P: Estamos vivendo uma revolução na neurociência?

Moser: Eu diria que estamos mais preparados, com certeza, tanto no que nos permite estudar as células uma por vez ou milhares ao mesmo tempo. E também obtemos muito mais dados, a quantidade que for necessária. Isso nos permite trabalhar nos mecanismos do cérebro, principalmente em relação ao sistema de navegação e da memória, que estão ligados. Percepção de tempo/espaço, tempo e memória são as três funções com as quais mais trabalhamos no laboratório. Essas são exatamente as funções que primeiro são afetadas no Alzheimer. Entender como esse sistema cerebral funciona também será uma contribuição para a busca dos mecanismos da doença. Ao descobrirmos o que dá errado, eventualmente também será possível criar um tratamento.

P: Em quantos anos acredita que teremos uma resposta para essa doença?

Moser: Não posso prever, mas o que posso dizer é que agora está avançando muito rápido. Haverá avanço mais cedo ou mais tarde. Acho que será como aconteceu com o câncer, há 50 anos, sabia-se muito pouco sobre e não se conseguia tratar muita coisa. Hoje, para muitos tipos de câncer, existem tratamentos realmente eficazes. Acontecerá o mesmo com o Alzheimer e também com outros distúrbios neurodegenerativos, como o Parkinson. A única coisa que posso dizer é que se não houver investimento em pesquisa, o avanço não vai acontecer. Isso é certo.

P: Existe algum caminho promissor, considerando o Alzheimer?

Moser: Há muitos caminhos, mas acho que o fato de hoje haver muito mais ideias sobre como o Alzheimer pode surgir e o que pode desencadear a degeneração neural tem sido muito útil, porque esse campo ficou preso por muito tempo a uma única ideia. Hoje, há muitos caminhos possíveis, e também sabemos que o aparecimento pode estar relacionado ao estilo de vida. O sono é importante, a pressão arterial também. Muitas coisas podem desencadear esses processos. Essas descobertas também criam muito potencial para tratamentos. Não há nenhum tratamento realmente capaz de barrar o Alzheimer neste momento, mas acho que isso pode chegar. Sou otimista.

P: Vivemos um momento ímpar da ciência, com muita descrença nos cientistas, alguns cenários de retirada de investimentos, mas também de muita evolução. Como avalia tudo isso?

Moser: É um perigo que a confiança pública na ciência esteja diminuindo e que haja tantas informações "alternativas" e falsas. As pessoas não sabem no que acreditar ou não. Quando a confiança pública na ciência desaparece, fica mais difícil obter financiamento público, porque grande parte disso é paga com dinheiro dos contribuintes. É ruim não só para a ciência, mas também porque bloqueia o progresso nessas áreas sobre as quais falamos. Para mim, está tudo bem, porque estamos em um país e temos um governo que apoia a ciência, mas gosto de lembrar que cada cientista é parte de uma comunidade global. Em outros países, estou nos Estados Unidos agora, vejo como tudo está desmoronando. São tempos muito perigosos.

P: Como deveríamos cuidar do nosso cérebro?

Moser: É o mesmo que ter uma vida saudável. Comer as coisas certas, não beber demais e dormir o suficiente, isso é muito importante. O sono é extremamente importante, porque limpa o cérebro de todos os resíduos dos quais precisamos nos livrar. E também se exercitar, movimentar o corpo. O que mantém o corpo saudável também mantém o cérebro saudável. Além disso, também é importante expor o cérebro a material complexo e variado. Quanto mais diferente e mais complexo for o material, mais ele aprende e gera mais conexões, fica mais saudável, mais preparado para qualquer situação.

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