
"É um caso de amor que já dura quase 60 anos". É assim que Ana Cristina Ignácio da Silva, 63 anos, resume sua relação com o Carnaval. Nascida em Bauru e criada em uma família com raízes no samba, ela teve seus primeiros passos ritmados embalados pelo pai, João Baptista da Silva, e, à medida que foi crescendo, absorveu o significado da festa como expressão da identidade afro-brasileira.
Conhecida como Cris ou Inara Bauru, a sambista viu duas mulheres, sua avó Camila e sua tia Maria, participarem da fundação da Mocidade Independente de Vila Falcão, atual Mocidade Unida, da qual se tornaria presidente mais tarde. Como membro da Sociedade Amantes do Samba Paulista (Sasp), contribuiu para fortalecer o Carnaval bauruense e foi, ainda, peça importante para a retomada da festa na cidade, em 2009, após um hiato de dez anos. Na mesma época, a família fundou o bloco Unidos do Samba.
Ao mesmo tempo, Cris dedicou-se ao crescimento de sua carreira como bancária e às suas atribuições como mãe de Larissa Cristina, 22 anos - rainha do Carnaval de Bauru 2025 - e Gabriel, 15 anos, e esposa de Jailton (in memoriam). Atualmente, ela trabalha como correspondente da Caixa para crédito imobiliário e tornou-se consultora voluntária das escolas de samba.
Neste ano, a convite de Vinicius Trombini, também se destacou como comentarista e entrevistadora na transmissão do Carnaval de Bauru realizada pelo JCNET em parceria com a Ao Vivo Transmissões. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista, na qual Cris revisita sua trajetória e revela curiosidades sobre bastidores do mundo do samba.
JC - Sua história é muito conectada ao Carnaval. Como foi esse início?
Cris - A família do meu pai sempre foi envolvida com Carnaval. Meu pai era ferroviário e me levava desde os 4 anos, junto com meus três irmãos, para pular Carnaval nas matinês do Noroeste. Era uma alegria. Já minha mãe, católica, não participava. Com a família paterna, compreendi o Carnaval como uma festa de pretos, uma reverência aos afrodescendentes. Fui criada na Vila Falcão e todo pessoal do Estela Machado e do Luiz Castanho se uniam para brincar o Carnaval. Íamos ao Bauru Atlético Clube (BAC), nos divertíamos sem álcool ou drogas. A música, a dança, o ritmo e o batuque já eram inebriantes.
JC - Nesta época, já tinha envolvimento com escolas de samba?
Cris - A Mocidade Independente foi fundada em 1976, com ajuda da minha avó, Camila, e da minha tia Maria, quando eu tinha 14 anos. A Mocidade, aliás, sempre teve mulheres muito fortes. Meu pai saía na comissão de frente como um dos baluartes, minha irmã e um dos meus irmãos também desfilavam mas eu, por timidez, só fui uma vez em uma ala. Então, fui ajudar na área administrativa, como secretária, organizando eventos. Com uns 30 anos, fazia parte da Sasp e consegui trazer alguns amigos de São Paulo para cá, como o compositor Armênio Poesia e o intérprete Carlos Junior, que defenderam sambas em Bauru. Fiz parte da primeira geração da Sasp e foi uma revolução em minha vida.
JC - Como foi o período em que Bauru ficou sem Carnaval de rua?
Cris - Foram dez anos, mas ia assistir aos desfiles em São Paulo e no Rio, e desfilei na Mocidade Alegre e na Camisa Verde e Branco, minha escola do coração. Até que conheci o carnavalesco Cezar Hokamura (já falecido), um gênio, cartolista, e fomos até a Secretaria de Cultura para dialogar sobre a necessidade de voltarmos a ter desfile. Deu certo e, em 2009, retomamos. Foi quando minha família fundou o bloco Unidos do Samba e fizemos um lindo desfile. A partir dali, o Carnaval de rua foi, a cada ano, melhorando.
JC - Participou da retomada da Mocidade?
Cris - Primeiro, fui ajudar a Cidinha no Azulão do Morro, onde fiquei por um bom tempo. Até que, em 2014, recebi o convite para participar da reunião que trataria sobre a retomada da Mocidade e, lá, o Jair Odria assumiu a presidência e me chamou para ser vice. Fiquei no cargo por dois anos, depois fui para o bloco Esquadra da Indepa, quando fomos campeões do Carnaval, e voltei como presidente da Mocidade por um biênio. Em um ano fomos campeões e, no outro, vice. Nos últimos seis anos, estou nos bastidores, ajudando as escolas no que for preciso, indicando profissionais, dando opiniões sobre sambas-enredo, mas sem manter vínculo.
JC - Poderia contar uma história curiosa?
Cris - Uma vez, a dona Zica (sambista que foi a última esposa do cantor e compositor Cartola) veio a Bauru para um evento. Ela não gostava de ficar em hotel e ficou hospedada na minha casa, na época em que eu morava sozinha. Ela era uma mulher maravilhosa, carismática, mas muito simples, e eu fiquei em êxtase. Depois, cheguei a ir à casa dela, no Rio de Janeiro.
JC - Além da dedicação ao Carnaval, fez carreira em qual área?
Cris - Eu me formei em engenharia elétrica na FEB em 1986, mas o único projeto elétrico que fiz foi o da minha casa, porque logo fui aprovada em concurso na Nossa Caixa, Nosso Banco e, em 1989, fui para a Caixa Econômica Federal, onde fiquei até me aposentar, em 2017. Demorei para formar família porque, primeiro, foquei na carreira. Entrei como escriturária e saí como gerente, algo muito difícil pela cor da minha pele e por ser mulher. Mas conquistei muitas coisas pela dedicação aos estudos, algo que aprendi com meus pais e ensino aos meus filhos. No banco, inclusive, tive a oportunidade de fazer pós-graduação em gestão estratégica de pessoas na FGV, quando consegui me desenvolver ainda mais não só na carreira, mas também no gerenciamento de conflitos dentro das escolas de samba.
JC - Qual é o significado do Carnaval na sua vida?
Cris - Com os enredos das escolas de samba, aprendi muito sobre os orixás, a história do Brasil. Amo o Carnaval pelo valor da nossa ancestralidade, da nossa cultura, pela alegria e beleza que contagiam o povo e me arrepiam, mas também por garantir a sobrevivência da costureira, do serralheiro, do soldador, do aderecista, do vendedor ambulante, de muita gente. Eu vivo o Carnaval o ano inteiro. É um caso de amor que já dura quase 60 anos.
O que diz a sambista
'Voltei como presidente da Mocidade por um biênio. Em um ano fomos campeões e, no outro, vice'
'Entrei no banco como escriturária e saí como gerente, algo difícil pela cor da minha pele e por ser mulher'
'Amo o Carnaval pelo valor da nossa ancestralidade, pela alegria e beleza que contagiam o povo'