OPINIÃO

As cotas raciais e o lugar de fala

Por Zarcillo Barbosa | 16/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é jornalista e articulista do JC

O Brasil entrou, de forma definitiva, na era da ação afirmativa. Reconhece, por uma política de estado, que o princípio de igualdade de todos perante a lei é insuficiente para garantir a plena cidadania.

Evidencia-se um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, ou origem nacional. Há um desejo, latente na maioria, de se corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado. O objetivo é a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.As primeiras experiências de ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos, nos anos 1960, após o presidente Kennedy determinar medidas positivas no sentido de promover a inserção dos negros no sistema educacional de qualidade, historicamente reservado às pessoas brancas.

No caso brasileiro, a expressão "ação afirmativa" ou "políticas afirmativas" alcança não apenas os afro-brasileiros, mas todos os segmentos historicamente discriminados e ainda hoje com muitos excluídos Vale lembrar que as chamadas ações e políticas afirmativas, são consideradas discriminação positiva, pela finalidade de inclusão social dos segmentos historicamente excluídos.

Agora, que tudo caminha bem, embora com mais de meio século de atraso, surgem óbices desnecessários, como a da discussão sobre a aplicação da chamada Lei de Cotas, um dos instrumentos da ação afirmativa. Somos um país de pardos, mas isso não diminuiu o preconceito de cor. Aqui, não se adotou o critério do genótipo, que é a composição genética herdada dos pais.

Nos Estados Unidos, basta uma gota de sangue negro nas veias, para que a pessoa possa se considerar "negro", para gozar das políticas públicas em seu favor. Aqui, o critério é do fenótipo, que é o conjunto de traços dos pais observáveis pela cor da pele, cabelos, cor dos olhos, tamanho do nariz, do lábio. Características que podem ser mensuradas em um indivíduo.

Por esse critério, no processo de seleção para ingresso na USP, dois estudantes foram indeferidos porque a comissão de heteroidentificação, que alguns chamam de "tribunal racial", não viu neles o nariz negroide de base mais larga, cabelos ulótricos e lábios grossos. Seriam integrantes de grupos étnicos distintos, não contemplados pela Lei de Cotas. Um dos barrados, garoto de família de Bauru - pai pardo e mãe branca - fora selecionado para a concorrida Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Ambos recorreram judicialmente, foram liminarmente bem sucedidos e matriculados. O STF havia firmado jurisprudência pela qual não deve se levar em conta a ancestralidade (filho, neto de pai ou mãe negros).

Também é defensável que algum tipo de cuidado deva ser tomado para evitar fraudes. A Lei de Cotas, de 2012, dispõe que 50% das vagas de cada curso, de cada turma, deve ser reservada a alunos de escola pública. Dentro dessas vagas, uma parte deve ser destinada aos que sejam autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, conforme a distribuição demográfica de cada região.

A USP é acusada de querer ter a prerrogativa de escolher o negro para às suas salas de aulas. As comissões avaliadoras de identidade étnico-racial têm seus membros indicados pela Coligação de Coletivos Negros, e teriam o "lugar de fala".

Lugar de fala, tal como empregado no debate político vulgar, consiste na ideia de que, em assuntos que envolvem opressão, apenas pessoas de grupos oprimidos devem falar. Quando discutimos machismo, cabe a mulheres a palavra e, quando falamos de racismo, o palco deve ser cedido aos negros.

Diferentes ideias parecem ter impactado a implementação de políticas de ação afirmativa, que já haviam sido absorvidas pela sociedade branca. Para que não haja mais atrasos ou retrocessos, é preciso pacificar o menos importante.

Receba as notícias mais relevantes de Bauru e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.