OPINIÃO

A viagem

Por Zarcillo Barbosa | 09/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista e articulista do JC

Viajar é bom, não fora a viagem. Os aviões, há muito perderam o charme de antigamente. Você, passageiro, é apenas um rosto na multidão que também pagou pelo assento, pela mala embarcada e, nas linhas domésticas, até pelo direito de comer um sanduíche a bordo.

Nos voos internacionais, a comida está inclusa, mas é ruim. Parece que você está mastigando isopor. Insossa. As comissárias de bordo, antes chamadas de aeromoças, agora são umas senhoras passadas com pouca paciência.

Sofre-se desde a fila do check-in, porque o totem, para você auto se checar, geralmente não funciona.

O usuário paga caro pela viagem e ainda vai sentado em cima do assento flutuante que serve de salva-vidas. No meio da viagem começo a sentir dor no cóccix. Além desse inconveniente, a distância entre os bancos obriga-nos a passar horas encolhido. Se você for sorteado com um assento no meio da fileira do meio, para ir ao banheiro, somente pulando por cima das pernas dos passageiros, ou conseguir acordá-los do sono profundo à base de zolpidem.

A permanência no lugar de destino é que é boa, desde que a sua mala não tenha se extraviado. Em matéria de "companheiro da poltrona ao lado", confesso, não tenho sorte. No sistema aleatório gratuito, geralmente fico exprimido entre dois pesos-pesados que invadem o meu espaço e não me dão o direito de descansar o cotovelo no braço da poltrona. Uma vez sentei ao lado de uma senhora com um filho traquina no colo.

Durante todo o voo de muitas horas o garoto demonstrou aquela excelente vitalidade que só os modernos complementos vitamínicos da Nestlé são capazes de proporcionar. Toda vez que eu tentava tirar uma soneca ele enfiava o dedinho na minha pálpebra e ria com o meu acordar assustado. A mãe ainda achava graça, como se estivesse a dizer: "criança é assim mesmo..."

Na minha mais recente viagem, ao sair de Atlanta, fui favorecido com uma poltrona no corredor. A jovem que se apresentou para ser minha vizinha era loirinha, de vestidão até o tornozelo, sem maquiagem e unhas ao natural. Depois das apresentações de cortesia disse que era americana, missionária mórmon. Destino final, o Uruguai, para trabalho religioso. Disse que gostaria de praticar o seu espanhol comigo. Devolvi que só falava portunhol e ela ficou curiosa com esse novo idioma. Tive de dizer que era uma brincadeira de brasileiros. Foi quando ela decidiu exercer sua catequese. Perguntou-me se "gostaria de receber Jesus no coração". Apelei à prudência de não incomodar o Chefe nesta hora. Não falou mais comigo.

À minha direita, separado por um estreito corredor, um iraniano falava português com sotaque carioca. Disse que ia tratar de negócios com a Petrobras, no Rio de Janeiro. Arrisquei perguntar se o seu país, segundo produtor de petróleo depois da Arábia Saudita, não estava preocupado com a ascensão dos carros elétricos. Assegurou que o petróleo ainda conservará sua hegemonia como o melhor combustível, ainda por mais de um século. Deve ser por isso que o barril a 83 dólares ainda é muito caro - comentei. Aí o sujeito se exasperou. Absurdo maior é pagar-se 600 dólares por um barril de cerveja. Ou 5.800 dólares por um barril de uísque. Ou ainda 2 milhões de dólares por um perfume francês - se é que o Chanel nº 5 possa ser vendido em barris.

Reclamei que o Irã e a Arábia Saudita diminuem, de propósito, a extração do produto, para aumentar o preço dos combustíveis fósseis e isso desorganizava a economia no Brasil. Perguntou, enfático, porque eu não me preocupava com a economia do Irã, país submetido ao mais perverso cerco econômico liderado pelos Estados Unidos, e todas as potências europeias e asiáticas.

Senti que começaria a perder de lambada. Ainda bem que o que chamam "jantar" chegou. Na despedida, em Guarulhos, meu ilustre e desconhecido vizinho me brindou com um cartão escrito em iraniano. Indecifrável.

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