OPINIÃO

Um doce de ambrosia e fel

Por Paulo Cesar Razuk | 12/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Unesp - Bauru

Esse mundo, com o qual procuro ajustar contas todos os dias, é um mundo incomum, um mundo sutilmente discreto. O Eterno não desenhou o mundo com linhas contínuas, traçou-o com pontinhos minúsculos. Tanto é assim que o presente é um desses pontinhos, é muito curto e por ser quase imperceptível, fica esmagado entre o passado e o futuro.

Nesse mundo o tempo é, também, medido pela lembrança, pela saudade e pela dor da ausência. Mas, não é a ausência que provoca a dor. São o afeto e o amor. Se eles não existissem não haveria a dor da ausência. Por isso a dor da ausência, no fundo, é boa porque se alimenta daquilo que dá sentido à vida.

Segundo o estoico Sêneca, a dor é egoísta e destituída de gratidão por nossos entes queridos. Em vez de nos deixarmos abater pela tristeza de perdê-los, sejamos gratos pelas experiências que tivemos juntos. Sêneca escreveu a um amigo que perdera um filho: "Você enterra uma amizade junto com o amigo? Acredite em mim: grande parte das pessoas que amamos permanece conosco, mesmo que o acaso as tenha levado. Cabe a nós preservar o tempo que passaram conosco, portanto, nunca reclame do que lhe retiraram, mas agradeça pelo que recebeu". Para ele não faz sentido se queixar das coisas que devem ser esperadas, mas sim, viver de acordo com aquilo que a natureza nos impõe como seres mortais e aceitar os solavancos inevitáveis da estrada da vida.

Buda ensina: o que sofremos não está nem no passado nem no futuro, está aqui, agora, em nossa memória e em nossas antecipações. Ansiamos pela atemporalidade, sofremos a passagem, sofremos o tempo. E conclui: tempo é sofrimento porque tudo o que começa, termina.

Cada momento de nossa existência está conectado a um fio vinculado ao passado pela memória. Eu sou os meus pensamentos, sou os esforços de meus pais, o carinho de minha esposa, sou minhas viagens, meus projetos e artigos, sou as coisas que ouvi, os rostos dos amigos e colegas que ficaram impressos em minha memória. É a memória que une os processos espalhados no tempo dos quais somos constituídos. Nesse sentido, existimos no tempo e o tempo existe em nossa mente tanto no presente como no passado através da memória e no futuro através da antecipação.

No grande épico indiano Mahabharata, alguém pergunta ao mais idoso dos sábios, qual é o maior mistério do mundo e a resposta vale hoje mais do que nunca: "inúmeras pessoas morrem a cada dia e mesmo assim as que permanecem, vivem como se fossem imortais".

Eu não gostaria de viver como se fosse imortal. Não tenho medo da morte, tenho medo do sofrimento. Amo a vida, mas concordo com Buda: a vida é cansaço, sofrimento, dor.

Bach, em uma de suas maravilhosas cantatas, chama a morte de irmã do sono, uma irmã gentil que logo virá fechar meus olhos e acariciar-me a cabeça. Jó morreu quando estava "saciado de dias". Belíssima expressão. Eu também gostaria de chegar a me sentir "saciado de dias" e encerrar com um sorriso essa passagem por aqui. Mas, por ora, ainda quero ver a lua refletida no mar e dormir ao som das ondas, quero mais beijos da mulher que amo, quero desfrutar da presença dela que dá sentido a tudo, quero encher muitas páginas com projetos de engenharia e escrever mais alguns textos para o JC.

Gosto da perspectiva de ainda poder beber deste cálice cheio de doces e amargos onde a vida fervilha, terna e hostil, clara e incompreensível, inesperada. O mundo faz da vida um doce constituído de ambrosia e fel.

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