Pobres formigas, que vida sofrida! Enfileiradas, curvadas, extenuadas carregam nas costas o peso da comida que, segundo o bom juízo, é prudente estocar. Não é, contudo, o que faz a vagabunda da cigarra. Folgada, passa o dia dedilhando a guitarra em eterno refrão: "Deixa a vida me levar, vida leva eu." O resto dessa maldosa história todo mundo conhece, ainda assim vou contar. Vem o inverno, vem a fome; as formigas comerão, a cigarra não. Mania besta e, ao mesmo tempo esperta, essa de acorrentar o trabalho ao sofrimento e à dor. "No suor do teu rosto, comerás o teu pão", não é isso que dizem as sagradas escrituras? Que toda lida é dura e penosa há de ser?

Isso explica a dificuldade dessa gente tapada de entender o trabalho prazeroso de toda cigarra. De perceber a importância do canto, da dança, da pintura, da poesia, da arte de todas as outras cigarras, cada uma fazendo a sua parte, para o mundo sensibilizar. As cigarras fazem pensar e ensinam a pele a arrepiar.

Benditas formigas com suas mãos calosas em eterna construção. O Chico, que é uma cigarra buarque, mostrou triste cena de uma delas despencando dos mais altos andares, em viagem curta pelos ares, para no chão se esborrachar. Pior, na contramão, atrapalhando o tráfego.

Benditas sejam as cigarras! Sem elas, como cantar? Como dançar? Sem sonho poetado, como a vida levar? "Deixa a vida me levar, vida leva eu", disse outra cigarra pagodeira. Impossível viver sem avenida, viver sem samba que a vida só vale a pena sendo carnaval. Baianas rodopiando, pierrôs, colombinas, confete, serpentinas, barões famintos, napoleões retintos e os gigantes pigmeus do bulevar... Ai que vida boa, olerê! Ai que vida boa, olará! O bloco do sanatório geral vai passar! Vai passar!