OPINIÃO

O Mandôra

Por Marcondes Serotini Filho | 24/10/2023 | Tempo de leitura: 3 min

O autor é colaborador de Opinião

O menino, com seu pai de guia, não estava entendendo nada. Entraram naquela choupana nada asseada. Pudera: seu morador era um solitário pescador e também o melhor nadador da região. Conhecido por muitos amigos, sua cabana era o refúgio de quem queria escapar do mundo externo. Não chegava a ser um Vale das Sombras nem um mundo extra ou invertido, mas ali parecia que o tempo parava. Passada a ponte, indo pra Jaú, pega uma estradinha de chão à direita que chega no lugar, na beira do rio Tietê. Não é à esquerda. A esquerda ficava o Valter pescador, que negociava o pescado. Na verdade nem se sabe se o peixe dele era do Tietê.

Não havia energia e os peixes ficavam num isopor mesmo porque a venda era rápida. O pai do menino foi levar pro tal morador uma geladeira a querosene que estava parada - não havia eletricidade e pelo jeito ninguém a queria. O ermitão garantiu que iria reformar e fazer a geladeira funcionar.

O homem usava bermuda, sempre descalço ou de chinela e uma espécie de chapéu que ninguém sabia de onde vinha e o que era. Se era uma boina, um quipá judeu ou um chapéu de gnomo - será? Talvez um gorro de jogador de futebol .Ele explicava que jogou no XV de Jaú nos anos 50 e a natureza - com suas forças - o chamou pra esse isolamento. O menino ouvia tudo atento, enquanto os homens desciam a geladeira velha da caminhonete.

"- Sabe, garoto, temos de nos proteger do mau olhado"- orientava o homem: pra isso, coloque uma ferradura enferrujada sobre a soleira da porta, guarde um ferrão de quero-quero, apanhe 7 cabeças de alho, guarde um guizo de cascavel ou arranje um São Jorge de baralho. Se não tiver, uma pena de caburé na carteira vai fechar teu corpo. Estratégias contra o quebranto e pro "guampa-torta" não aparecer, ele dizia.

Considero aquele lugar como a "Caverna de Platão", mas com o mito ao contrário. Explico: de tudo que se precisava saber e entender da civilização e da vida cotidiana, perdia-se no espaço-tempo daquela casa estranha e diante de seu misterioso morador. Ali se falava o necessário, mas se entendia tudo. Havia magia no ar.

As famosas peixadas que ele fazia ficaram na história. Família dos Pereira de Pederneiras e dos Abdo de Jaú eram frequentadores assíduos daquele refúgio. Sabia muitas mandingas e as contava todas para a plateia atenta: tição cruzado no fogo é um perigo. Se voltava para o menino e aconselhava: "Não se mata joão-de-barro nem se dá tiro em corvo. Eu não durmo com os pés pra rua e nem sento em mesa que tenha 12 pessoas - mesa de 12. Nem em velório vou porque não gosto da pose do defunto. E era só risada. O dia passava. No lugar se chegava de automóvel, bote, barco ou lancha. E o movimento era modesto.

O menino queria saber o que eram aqueles santinhos colados todos na parede do casebre. Eram muitos, que formavam um painel macabro até. Ele contava que eram os santinhos (fotos) das pessoas que morreram afogadas e que ele ajudou a achar os corpos.

- Como assim?, quis saber o piá intrigado.

Naquele tempo, quando alguém se afogava nas águas do Tietê, as autoridades procuravam por algum tempo o corpo do desafortunado que foi tragado pelo rio. Quando desistiam por não achar, era chamado o homem da cabana. O ritual era de arrepiar: ele fazia uso de uma bandeja - ou uma bacia mesmo -, por sobre a qual ele acendia uma vela para depois sair navegar pelo rio. Em algum momento, quando a chama crispava diferente ou lhe dava o sinal que só ele decodificava, mandava parar o barco e era batata: está aqui, apontava. Em pouco tempo ele mesmo mergulhava por ser exímio nadador e encontrava a pessoa desaparecida. Era assim. Seu nome? Mandôra.

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