OPINIÃO

A arte que nos cutuca

21/10/2023 | Tempo de leitura: 3 min
O autor é jornalista e articulista do JC
Zarcillo Barbosa

Há dois anos, uma escultura do italiano Salvatore Garau, foi vendida por 15 mil euros (cerca de R$ 90mil), no mercado de artes. Notícia corriqueira, não fosse por um detalhe: a obra não existe.

A obra foi chamada de "escultura imaterial", só existe enquanto ideia e o colecionador que a adquiriu ainda acha que fez um bom negócio. Se existe a lógica da criptomoeda, com cotação diária, que agrega valor de forma totalmente dissociada da materialidade, também não é mais necessária a obra para que seja comprada sua exclusividade.

Os filósofos da Escola de Frankfurt, como Walter Benjamin e Theodor Adorno, marxistas teóricos, jamais poderiam imaginar que o capitalismo iria dar um jeito de resolver o problema da perda da sacralidade da obra de arte por sua reprodução industrial, com a fotografia e o cinema. A virtualização da arte, com sua certificação de autenticidade não pode se tornar numa mercadoria de consumo rápido, como eles questionavam.

Os estudiosos dessa questão, como Filipe Campelo, brasileiro doutorado em Frankfurt, lembram Marcel Duchamp (1917), que, ao contrário daqueles filósofos, atribuía valor a produtos industrializados (ready-made), independente da sua materialidade. Duchamp expos um mictório de louça numa mostra vanguardista em Nova York, que até hoje, mais de cem anos após, ainda é discutido. O urinol, denominado "A Fonte", desses comuns em banheiros de "homens" - naquela época ainda não se discutia questões de gênero - foi considerado a negação da própria arte.

A escola dadaísta tinha mesmo o objetivo de chocar pelo absurdo, a incoerência, a desordem e o caos. Uma forma de protesto contra os estragos trazidos pela guerra, denunciando de forma irônica o horror por ela causado. O protesto da não-arte parece que não conscientizou a humanidade que continua se trucidando no século 21.

Em 1952 John Cage "toca" uma peça musical composta de 4 minutos e 33 segundos de silêncio. Cria uma expectativa, mas não executa uma única nota musical. É uma obra para qualquer instrumento. Os "acordes" ficaram por conta dos murmúrios da pateia inquieta, ranger de cadeiras, sussurros ao pé do ouvido e o sibilar do ar condicionado.

Apesar do caráter provocativo, Cage conseguiu destacar o silêncio da música e assim ampliar os limites da arte contemporânea. É um happening, que jamais se reproduzirá novamente, porque até o silêncio nunca é igual. Tudo flui, ensinava Heráclito de Efeso.

Antes disso, em 1951, Rauschenberg expõe suas pinturas em branco, e também "black paintings", telas totalmente negras. Salvatore Garau, o mesmo escultor lá do começo, na Piazza della Scala, em Milão, demarcou um quadrado com fitas no chão e chamou a "escultura" de "Buda em Contemplação".

Hoje é assim - ou está ficando assim -, nem é mais necessária a obra para que seja comprada sua exclusividade. Estão rareando os talões de cheques e dinheiro de contado. A troca é fictícia no pós-capitalismo. O emprego também. Marx chegou a profetizar que as tecnologias acabariam com as relações de produção, o que representaria o fim do capitalismo pela ausência de patrões e proletários. Parece que ele errou. A única coisa real e autêntica ainda é o capital. O virtual vale dinheiro.

Para quem quer lavar dinheiro roubado ou produzido por evasão fiscal, o mercado imaterial de arte seria uma ótima opção. Pelo menos uma estratégia de vanguarda dos corruptos.

A arte é um trabalho de conexão com a realidade a nossa volta. Muitas vezes não temos consciência dessa realidade. É importante quando alguma coisa cutuca e nos faz acordar para estabelecer trocas de energia, de expressões, de sentimentos e sensações. Só assim conseguimos compreender o valor do outro e o que realmente consideramos importante em nossas vidas.

A arte é feita para nos fazer raciocinar, e não para o artista-autor pensar no nosso lugar.

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