OPINIÃO

A liturgia do cargo

Por Reinaldo Cafeo |
| Tempo de leitura: 3 min
O autor é diretor regional da Ordem dos Economistas do Brasil

A expressão "liturgia do cargo" se popularizou quando o ex-presidente José Sarney assumiu a Presidência da República após a morte do presidente eleito, Tancredo Neves. Isso foi lá em 1985 e o mandato de Sarney, na época vice de Tancredo, foi até 1989.

Do ponto de vista econômico, Sarney poderia ter ficado para a história com o presidente que derrubou a hiperinflação brasileira, afinal, o Plano Cruzado teve uma adesão e um sucesso inicial junto a população, mas por puro projeto de poder, manteve o congelamento de preços mais tempo do que deveria, e a inflação que foi combatida inicialmente, voltou. Nem os Planos Cruzado 2, Bresser e Verão foram capazes de conter a escalada de preços.

Voltando à "liturgia do cargo". Sarney fez uma alusão ao tema utilizando-se da realidade da igreja católica. Ele usou das práticas de um culto religioso para moldar seu comportamento no serviço público. Desde então há um dilema nesta questão: até onde o comportamento na vida privada se confunde com o da vida pública? Não há dúvida que assumir um cargo, tanto no Executivo como Legislativo e no Judiciário, exige do empossado um comportamento, diria mais polido, menos impulsivo, mais comedido. Infelizmente, não é isso que se vê na prática.

Se analisarmos os comportamentos tanto de Lula como de Bolsonaro, enquanto presidentes da República, a liturgia do cargo passou ao largo. Não se comportam e nem se comportaram como Estadistas. Declarações tendenciosas, brincadeiras inapropriadas, vocabulário chulo são alguns comportamentos inapropriados para quem dirige o país. No Judiciário, um ministro da Suprema Corte, ao comparar decisões judiciais com decisões no âmbito do futebol, ou ainda se comportar como comentarista de tudo, ou falar a alguém que o questiona sobre um determinado tema e ouve "perdeu mané", distancia-o, e muito, da "liturgia do cargo".

O recente caso do deputado federal Nikolas Ferreira vai nesta linha. Ao usar uma peruca em sua fala no Congresso, não cumpriu a "liturgia do cargo", afinal, tratou de um tema importante, com deboche. Quando algum político, um agente público, em qualquer esfera de governo, e até mesmo um CEO de uma empresa não seguem a "liturgia do cargo", passam insegurança, geram desconfiança e perdem credibilidade.

No âmbito das cidades, não atender demandas do Legislativo, não abrir diálogo com a sociedade para discutir os graves problemas destas cidades, falando somente para suas bolhas em redes sociais, não aceitando as cobranças da imprensa, atropelando processos, utilizando-se de dois pesos e duas medidas, no famoso "aos amigos tudo e aos inimigos a lei", são alguns pontos importantes para reflexão.

No passado não distante, as autoridades constituídas eram respeitadas porque quando assumiam posições importantes na sociedade, eram respeitosos com todos, e com isso também eram respeitadas por todos e, sempre, dentro da "liturgia do cargo", discutiam os vários temas de interesse coletivo em foro adequado, sem se preocupar quantas curtidas terão, como será o engajamento e quantos seguidores adicionais alcançará. Para alguns, o tempo cronológico não ensinou nada, e mesmo mais "maduros" continuam atropelando a "liturgia do cargo", para outros, mais novos, que deveriam aprender com os erros, por se sentirem acima do bem e do mau, continuam a cometer os mesmos erros.

Uma coisa é certa: tudo isso tem um preço: ou maculam a Instituição que atuam e seus próprios currículos, ou, no caso de políticos, a urnas penalizarão. A sociedade está cada vez mais crítica e sabe avaliar quem cumpre e quem não cumpre a "liturgia do cargo".

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