Sábio quem souber viver com toda profundidade, os meandros sutis e inspiradores da primavera. Terá armazenado para estações futuras, mais desgastantes, força e lembranças, assim como a revindita das agruras já passadas.
Porque sou do tempo em que havia espaço para todos e havia jardins...
Que tempo é esse? De que espaço estamos falando? De quem estamos falando? Falamos dos idosos, dos velhos, das pessoas que estão com mais de 60 anos. A vida média das pessoas aumentou, hoje já se vive mais de 90 anos lúcido e forte e a pergunta que fica é: o que fazer com nossos velhos?
Não podemos ignorar a existência deles e muito menos sua capacidade de ação, seu conhecimento, sua vontade de agir e ser útil. Precisamos utilizar esse repertório de saberes, devemos recorrer à sapiência armazenada do velho, saber resgatá-la e ampliá-la.
Do velho e bom provérbio à receita de bolo, dos chás medicinais às cantigas de ninar, das brincadeiras às sortes nas noites de junho, das histórias contadas na cozinha ao passeio na praça ao redor do coreto, das técnicas de trabalho à construção de uma engenhoca, das maneiras de se cultivar o solo aos costumes familiares... tudo isso são vivências!
Relembrar, recordar, rememorar, só podemos nos recorrer a esses artifícios se nos permitirmos viver. O ritmo atual da vida é muito rápido, o tempo parece ser cada vez mais curto, nossos compromissos aumentam a cada dia, acumulamos obrigações e deveres que nem sempre são nossos, nos impomos sermos lindos, ricos e felizes e quase sempre esquecemos de viver.
Na correria do dia-a-dia sequer olhamos o ambiente em que estamos, nossos companheiros de trabalho, nossos filhos, nossa casa, e assim vamos passando o tempo sem criar vínculos fortes com nada, tudo é descartável, da roupa ao eletrodoméstico e até os amigos.
Sábio quem souber viver com toda profundidade..., sábio quem souber cultivar amizades verdadeiras, sábio quem se permitir sonhar, sábio quem somar, multiplicar e depois dividir para ampliar e disseminar saberes, sábio quem souber ouvir e refletir.
Estamos no inverno... o inverno é o cômputo de todo um passado, uma sabedoria feita de vivência, experiências sedimentadas através de risos e lágrimas e muito amor... todas as estações vividas ainda vibram em nós e estas longas noites de inverno são a ocasião propícia que a vida nos oferece para recordarmos.
Na memória dos mais velhos é que está nossa grande herança. É o velho que detém saberes, é do velho a função de lembrar e aconselhar, é dele que deveríamos extrair a sabedoria, a competência, as experiências, pois ele é o guardião de tradições, de histórias, que devem se reproduzir e gerar muitas outras, através de gerações e gerações.
Resgatar, registrar, ativar essa memória fará dos nossos velhos pessoas transmissoras de talentos e saberes tão úteis à sociedade e à preservação da cultura e de nós, sujeitos receptores, pessoas melhores, mais atentas, mais cuidadosas, mais capacitadas a entender e continuar construindo a história do nosso país.
Revigoramo-nos recordando antigos amanheceres... sábio quem souber viver com toda profundidade... terá armazenado para estações futuras, mais desgastantes, força e lembranças... na esteira do destino, rico é aquele que sabe cultivar, e a cultura é própria do homem.
(*) Leila Grassi é professora de Cultura Brasileira, colaboradora de Ju Machado-Escritório de Arte. As citações foram retiradas do livro Estações, de Adelaide Reis de Magalhães.