Crack transforma vizinhos em alvos
Vício leva ladrão a agir nas redondezas, algo que era evitado antigamente; bandido ‘moderno’ é afoito e mais perigoso
“Malandro é malandro, Mané é Mané”. Bezerra da Silva nunca esteve tão certo. O problema é que, agora, os “Manes” estão à solta e mais ousados do que nunca. Desde que o crack se tornou epidemia, o “perfil” da bandidagem mudou.
Em outras épocas, testemunham policiais, e até mesmo criminosos “das antigas”, independentemente ao tipo de ação, havia até mesmo uma espécie de “bom senso”, por mais antagônico que pareça.
Ladrão não atuava no bairro onde morava. Pelo contrário, zelava pela tranqüilidade na vizinhança e ia atacar outra freguesia.
Hoje em dia, quanto mais próxima à vítima, mais fácil para cometer um crime “instantâneo” afim de cessar a fissura pela droga.
Além de especialistas na área de segurança pública, quem mais atesta essa mudança no perfil dos criminosos são as próprias vítimas. Pessoas que há anos moram num mesmo bairro, que, durante décadas, nunca tiveram problemas, agora enfrentam a constante ameaça de ter a moradia invadia, objetos roubados ou furtados, além do pior: o medo da violência.
É o caso de empresário morador do Jardim Ouro Verde. Com a condição de ter a identidade preservada, ele reclama das constantes “visitas” dos mesmos criminosos. “Tudo quanto é material eles levam”, lamenta ele, dizendo já ter encontrado, dentro de casa, até mesmo uma barra de derro, que possivelmente seria usada pelos ladrões em ações futuras.
Cabeça a prêmio
Quem também teve surpresas desagradáveis nas proximidades de casa é um aposentado, de 60 anos, morador do Jardim Europa. Ele, que também pede para não ter o nome revelado, encontrou um cachimbo de crack a poucos metros da porta da frente.
Segundo ele, a casa onde mora é constantemente invadida por bandidos – sempre os mesmos, alega – que se alojariam numa favela, em constante crescimento, situada a alguns metros das casas do bairro.
O aposentado conta que chegou a colocar a cabeça a prêmio na tentativa de recuperar um celular furtado, ao oferecer dinheiro para conhecidos dos criminosos. Segundo ele, não há cerca elétrica ou alarme que detenham os invasores.
Recentemente, o morador foi ao Plantão Policial registrar o furto de mais um objeto de dentro de casa – os ladrões levam desde botijão de gás até cortador de grama, comenta.
Na ocasião, após recomendação na delegacia, acionou o “disque denúncia” pelo telefone 181.
A atendente do outro lado da linha – no serviço centralizado na capital --, relata o aposentado, exigia o endereço do denunciado. “Eles moram na favela, sei quem eles são. Agora, não havia como informar o endereço exato. Foi então que ouvi não ser possível o registro sem o endereço”, narra. “O que eles querem, que eu forneça o RG e o CPF do bandido?”, revolta-se.
Relato do repórter: “Fui vítima dos dois tipos”
“Minhas duas – e espero que últimas – experiências pessoais com as facetas “tradicional” e “moderna” da bandidagem aconteceram num intervalo de cinco anos.
A primeira, no caso, com o estilo “profissional”, ocorreu numa madrugada de setembro de 2005.
Triângulo Mineiro, rodovia Transbrasiliana (BR-153), por volta de 1h. Viajo numa das últimas poltronas de um ônibus que havia partido de Brasília (DF), algumas horas antes.
A bordo, uma comitiva da cidade de Assis – onde eu morava e trabalhava na época. A excursão era composta, basicamente, de políticos que participaram de sessão solene na capital federal. Na ocasião, embarquei na condição de repórter.
A calmaria é quebrada pela freada seca do veículo, atocaiado por ladrões que viajavam num Astra.
Carro e ônibus em movimento, os bandidos, com o automóvel emparelhado à esquerda, apontaram uma escopeta calibre 12 na janela do nosso motorista, obrigado a encostar.
Três ladrões encapuzados, dois com armas de grosso calibre, e um “estagiário” com um pueril “38”, subiram e iniciaram a coleta. Enquanto um saía do fundo, outro recolhia tudo o que podia vindo da frente. O “profissionalismo” se completava com o terceiro bandido, que roubava os passageiros do piso inferior.
Além do terror habitual imposto por assaltantes – com direito a desvio de rota para um canavial escuro, com todos os passageiros enfileirados no lado de fora, aos gritos de “Vamos apagar um por um” – o cenário – os bandidos levaram as chaves do ônibus embora – nada mais grave ocorreu além do susto e perda de objetos pessoais e dinheiro.
Amador armado
Cinco anos depois, Bauru, final de uma tarde de outubro. Saio da redação do JC apressado rumo ao caixa eletrônico da agência do Banco do Brasil, na Rodrigues Alves. Saco o dinheiro e retorno para o carro.
Assim que abro a porta, dois homens em uma moto param ao lado. O passageiro, sem tirar o capacete, ordena: “Rspera, espera”. Com um 38 prateado e de cano longo apontado para minha cabeça, anuncia: “Assalto”.
Com a arma pressionada contra a testa, esvazio os bolsos e entrego a carteira. O ladrão, com olhos esbugalhados atrás da viseira aberta do capacete, não se contenta: “Você tem mais dinheiro e está escondendo”, gritou.
Mesmo após meus apelos de que não tinha mais dinheiro, o assaltante, em visível estado de alteração, insiste: “você tem mais dinheiro, não mente para mim”...foi o tempo dele descer a coronha do revólver na minha nuca.
Caí no banco dianteiro do carro. O bandido continua aos gritos, agora ele quer meu celular. Não encontro o telefone (no momento em que esvaziei os bolsos, o aparelho foi parar embaixo do banco do motorista, por Deus que não tocou).
Apressado pelo comparsa que acelera a CG-125 logo à frente, ele corre em direção à garupa. Dias mais tarde meus documentos foram encontrados, jogados num terreno, numa típica ação de quem queria dinheiro rápido, independentemente à quantia (foram levados cerca de R$ 180)ou consequências.
Criminosos ‘das antigas’ abrem o jogo
Ex-sequestrador e assaltante atualmente cumprindo pena comparam crime clássico com impulsividade dos viciados
Um mês. Essa era o período, considerado mínimo, para que um assalto fosse orquestrado e colocado em prática. Para o hoje comerciante automotivo e voluntário na recuperação de dependentes químicos, José Eduardo Contreira, 55 anos, essa espera era constante.
Dono de uma ficha criminal de aproximadamente cinco metros de extensão, Contreira, que não tem receio algum em expor nome, sobrenome e, principalmente, o passado, garante que hoje em dia estar quite com a Justiça.
Artigos criminais são diversos na extensa “capivara” (nome popular da folha de antecedentes nos meios policiais e na própria bandidagem). “Isso aqui não é tudo o que fiz. São apenas registros de quando fui pego”, acentua.
Por mais de três décadas, a vida de José Eduardo se dividia entre armas pesadas, cadeia, drogas ainda mais pesadas, e crimes, muitos crimes. Apesar de consumir e vender entorpecentes, ele revela que a postura adotada era sempre a de planejar e executar sem puxar o gatilho.
“Dar tiro é fria. Só suja a situação, chama os homens”, relaciona. “É muito diferente do assaltante viciado, ele perde a noção de tudo.”
A única informação que José Eduardo restringe é quanto tempo permaneceu atrás das grades, com direito a detenção no “célebre” pavilhão 9 do extinto Carandiru, em São Paulo. “Acho que fiquei menos do que merecia”, confessa.
Para ele, uma vítima deve temer muito mais um bandido que age impulsivamente do que um assaltante de banco, por exemplo. A observação a rotina de vítimas era obrigatória nas ações em que participava.
Numa delas, recorda, o plano envolveu três cidades (Bauru, São Paulo e Blumenau), quatro comparsas e trinta dias. O ano era 1982, o alvo: grande empresa do setor alimentício de Bauru. Após um mês de observação sobre o tesoureiro da companhia, a quadrilha resolveu colocar o plano em prática.
Guerras e sequestro
A bordo de um antigo automóvel Dodge, os quatro, incluindo José Eduardo, saem da capital armados até os dentes, com duas escopetas cano duplo calibre 20 e duas metralhadoras 9 milímetros: “As mesmas usadas na Guerra das Malvinas, vieram do Paraguai e Bolívia”, detalha.
Na saída da capital, porém, um dos integrantes do bando desiste. “Eu o obriguei, disse: ‘você não vai sair dessa fita’, pensei até em matá-lo. De comparsa ele passou à condição de vítima. Decidi sequestrá-lo”, narra.
O grupo precisava chegar a Bauru no exato momento do pagamento. Por isso, lembra José Eduardo, os criminosos “enrolavam” pelo caminho. “Numa dessas paradas, ele [o sequestrado], por descuido nosso, deixou recado no banheiro, dizendo que foi sequestrado e contando sobre o assalto em Bauru. Um caminhoneiro leu a mensagem e avisou a polícia”.
Após o bando entrar em Bauru pela Nações Unidas, subir até a Duque de Caxias pela rua Antônio dos Reis, para, em seguida, concretizar o plano, o quarteto cai no colo “dos homens”.
A Polícia Militar atendia ocorrência de trânsito na Duque de Caxias. Informada pelo motorista que havia parado no mesmo posto da rodovia Castello Branco, a PM abordou o motorista do Dodge. “Ainda bem que as armas estavam muito bem escondidas, nas molas do carro. Senão teria havido tiroteio”, conforma-se.
Limpo desde 2003
Após diversas prisões, quatro overdoses de cocaína na veia, assaltos e dinheiro torrado com drogas, viagens e prostitutas, ele diz ter encontrado a redenção há nove anos.
Limpo desde 2003, José Eduardo hoje trabalha na instituição terapêutica “Esquadrão da Vida”, onde faz palestras para dependentes em recuperação. “Não falo de religião. Falo de Deus.”
Necessidade versus fissura
Levado ao crime, segundo ele, pelas “necessidades da vida”, o sentenciado “Ricardo” (identidade fictícia), de 35 anos, cumpre pena num dos presídios de regime semiaberto de Bauru.
Condenado por roubo em Campinas, ele também difere o ladrão “profissional” dos assaltantes impulsivos desesperados em satisfazer o vício. “Muitos roubam por necessidade, outros por abstinência mesmo, certo?”, diferencia, em entrevista ao Jornal da Cidade por telefone.
Ricardo conta que foi preso após invadir uma casa. “Foi arquitetado, nada por impulso”, detalha. “Quem usa droga perde totalmente a noção, não sabe o que fazer e às vezes fica cego. Eu não, tive que partir para o crime porque estava endividado”, compara.
Essa “cegueira” por parte do criminoso a procura ou sob efeito de entorpecentes é atestada cientificamente, salienta a psiquiatra Florence Keer Correia, da Unesp/Botucatu. Por isso, defende a especialista, mais do que tratamento para os dependentes, é necessário discutir as formas de regeneração. “A internação tem de ser mais prolongada”, defende. “O usuário de crack sempre age impulsivamente, não mede consequências”, adverte.
Serviço
Grupo de Apoio Vida (Esquadrão da Vida): (14) 3239-6646/(14) 9712-4157. Encontros realizados nas quintas-feiras, às 20h, na Alameda das Rosas, 1-71, Parque Vista Alegre, Bauru.
Polícias seguem tateando soluções
Dificuldades das autoridades vão desde o fato de o dependente ter visão distorcida sobre a vida à legislação atual
Apesar da inexistência de dados oficiais, observa o major Fábio Jun Kitazume, comandante operacional do 4º Batalhão da Polícia Militar do Interior (BPMI), em Bauru, o crack realmente altera o perfil da criminalidade.
De acordo com o oficial, a falta de noção de perigo e grande necessidade de sustentar o vício potencializa a periculosidade de assaltantes ou ladrões “pula muro”.
“É um problema de certa forma recente, de uns cinco anos para cá”, estima. “O ‘nóia’ enxerga a realidade de forma diferente de uma pessoa em seu estado normal”, diferencia o major.
Para ele, não existe apenas uma área em potencial onde os criminosos movidos pelo vício agiriam na cidade. Toda a área urbana, considera, estaria vulnerável a ação dos marginais, que atacam sem pensar muito nas consequências.
Contudo, observa o oficial, terrenos cortados por ferrovias seriam os prediletos, por propiciarem fáceis esconderijos, devido ao estado de abandono.
Crimes, de certa forma, “bizarros”, julga o oficial, ocorrem com maior frequência. “Veja o caso do jovem que ateou fogo na casa com os pais dentro nesta semana, é um exemplo”, cita, acentuando que o acusado é viciado em crack.
Para minimizar o problema, além de tratamento aos dependentes, o major considera o combate ao micro e macro tráfico. Contudo, admite, a questão do crack, de tão complexa, ainda não tem uma “receita” para ser solucionada. “Ainda buscamos como gerenciar, achar saídas. Não é um problema apenas de crime”, considera.
Legislação agrava
Já o delegado Benedito Antônio Valencise, diretor do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo do Interior (Deinter) – 4, em Bauru, concorda com o major da PM sobre os caráteres tanto criminal quanto social do problema. Além disso, salienta o policial, a própria legislação, com tendência a “aliviar” para o pequeno traficante, também agrava a situação. Ele também concorda com a maior periculosidade, assim como “esquisitices” dos delitos envolvendo dependentes desse tipo de droga. “O grau de ousadia e violência de criminosos movidos pelo vício no crack é maior”, atesta. “O risco é muito maior”, acentua. “São furtos e roubos diferentes e, algumas vezes, estranhos, ocasiões em que o bandido atira no próprio pé ou entala no forro de uma casa”, ilustra.
‘Zumbis’ mudam o cotidiano de moradores e geram tensão diária
A arrumadeira M., de 42 anos, moradora do núcleo habitacional José Regino também é uma das vítimas desse novo cenário da violência.
Embora aliviada por ainda não ter sido abordada por nenhum criminoso, ela reclama da tensão diária a que é submetida, seja na ida ou vinda do trabalho.
Com medo de ser assaltada, ela diz ter vizinhos e amigos que não tiveram a mesma sorte, M. chegou a mudar o horário de entrada no emprego, um hotel da região central de Bauru.
Ela deixou de tomar o ônibus no ponto final da linha entre o centro e a Vila Tecnológica por volta das 6h para embarcar cerca de uma hora mais tarde. Antes do amanhecer, o ponto de parada dos coletivos não é restrito ao subir ou descer de passageiros, mas sim de comércio e consumo de drogas.
“Aqui perto também tem uma casa conhecida por ser ponto de venda de droga”, denuncia. “A gente nem chama a polícia porque eles (traficantes e usuários) conhecem a gente e acaba ficando perigoso”, justifica.
Segundo M., há pouco tempo, uma amiga foi abordada por um assaltante ainda dentro do carro, quando o marido desta a deixava para aguardar a chegada do coletivo.
“O mato alto da pracinha próxima ao ponto de ônibus deixa a gente ainda mais assustada”, relata ela, que, assim como os demais personagens desta reportagem, tem medo de expor sua identidade.
“Eles (drogados) ficam sentados no ponto no lugar dos passageiros”, narra a moradora. “Ficam lá durante toda a noite. É muito perigoso tomar o ônibus muito cedo, por isso consegui mudar meu horário no serviço”, reforça.