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Tecendo o amanhã

Zarcillo Barbosa
| Tempo de leitura: 4 min

"Um galo sozinho não tece uma manhã" ? diz o poema de João Cabral de Melo Neto ? "ele precisa sempre de outros galos". O galo do poeta não canta, "grita". Um grito de galo que vai passando de um a outro, tecendo a manhã, quem sabe o amanhã. Assim funciona a nova forma de fazer política, sem líderes, sem apoio de grandes partidos, sem sindicatos. Não tem base organizacional, nem infraestrutura e muito menos dinheiro. Nasce de "chispas de indignação". São movimentos despidos de centros de comando que possam ser desarticulados. Sem a pessoa certa para dialogar ou para ser presa. As reivindicações são difusas e algumas utópicas. Articula-se a ocupação de espaços públicos na internet; quanto mais repressão, mais imagens na mídia. A ação de depredadores celerados ainda ajuda a despir o movimento do véu romântico das barricadas de Os Miseráveis. O "monstro", como alguns o chamam age em qualquer cultura, seja islâmica ou cristã. Preenche o vazio entre as instituições e as ruas. Revela o tédio das massas diante do mal crônico que é o enriquecimento de alguns à custa do resto, a maioria. Transporte, saúde, e educação são os grandes temas dos discursos eleitorais, mas nunca funcionam. Talvez porque falte a esses serviços essenciais um "padrão Fifa" a ser aprendido à custa de bilhões de reais investidos em estádios (perdão, Arenas) de futebol. Essa paisagem típica da nossa sociedade pode mudar. Subir por si como a "luz balão" do poeta, tecido pelos fios de sol da manhã, cruzados com os gritos de milhões de galos.

Os jovens, hoje, têm celulares e tablets com os quais comunicarem suas insatisfações, a ponto de deflagrar a centelha capaz de incendiar o mundo, sem depender de políticos ou partidos. Estes, não mais os representam. É o fulcro pós-moderno dessa guerra campal exibida pela mídia global. O ciberespaço das redes sociais traz em seu bojo a própria forma organizativa. "Só os jovens representam. Pena que não ficam jovens muito tempo", disse o cineasta Akira Kurosawa, no filme sobre os seus "Sonhos". A presidente Dilma Rousseff era uma guerrilheira e lutadora pela liberdade quando tinha a idade dos que gritam hoje na porta do seu Palácio. Uma das frases enigmáticas deixadas por Saramago escancara um conflito da nossa existência: "nem a juventude sabe o que pode, nem a velhice pode o que sabe". Depois de atravessarmos a crise da adolescência, onde se experimenta a ruptura com o mundo inventado dos adultos, em que nada é totalmente verídico, os jovens passam a exercer o seu protagonismo diante de si mesmos. Eles não estão dizendo que têm as soluções, mas que estão dispostos a lutar por um país melhor. Até quando? É evidente que esta onda de indignação vai arrefecer em algum momento, como aconteceu nos países citados. Que deixe então sementes positivas para uma mudança real. Pelo menos, no Brasil, a resposta do governo aos indignados é mais sensata do que o da Turquia, do Egito, da Líbia, da Grécia, dos Estados Unidos, da Espanha. Nos Estados Unidos o movimento "Ocupe Wall Street" foi repelido com violência com o apoio do presidente Obama. Aqui, a presidente Dilma avaliou as manifestações como "a prova da energia democrática" e conclamou a classe política a "escutar essas vozes que vão além dos mecanismos tradicionais, partidos políticos e meios de comunicação".

O nível de vida da população miserável melhorou a partir do governo FHC. Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Minha Casa Melhor e outros mais foram e são ótimos para distribuir renda e aumentar a sensação de bem-estar. O que esses governos provedores não contavam é que a melhoria do nível de vida criasse outras demandas. Quando não cumpridas as crescentes expectativas, como observa o correspondente de El País, só fazem por aumentar as exigências e a irritação. Então, não basta que os governantes atendam pautas eventuais, como a redução das passagens de ônibus. Também seria ingenuidade imaginar que todas as exigências poderão ser satisfeitas. O impositivo é que os homens públicos se reciclem a partir desse protagonismo jovem, que acrescenta uma nova força política à realidade do país. Não é só ouvir "a voz das ruas". É preciso entendê-la para buscar atendê-la.

Concluo com o escritor francês George Bernanos: "É a febre da juventude que mantém o resto do mundo numa temperatura normal; quando esta febre desaparece, o mundo inteiro sente frio".

O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e articulista do JC

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