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Carnaval - ordem e subversão

Fábio Augusto Morales Soares
| Tempo de leitura: 3 min

Qual o significado do carnaval ao longo da História? Aparentemente simples, essa questão se revela das mais complexas quando vista mais de perto. Complexa não somente quanto às origens ? festival do romano Saturno, do grego Dionísio, da egípcia Ísis, do celta Cernunnos ? mas também quanto à sua relação com os poderes instituídos (e os destituídos) em cada contexto social. O carnaval é uma festa de libertação dos desejos e inversão da ordem social ou o oposto disso?

Se as comemorações camponesas de fim do inverno têm suas raízes na antiguidade, é somente na Idade Média europeia que o carnaval assumirá uma posição central na ordenação do tempo social, quando os dias de abundância e excesso precederão as restrições da Quaresma. A documentação sobre o carnaval é mais numerosa no século XII, o que é significativo, como se verá. Com duração variável em função da região ? três dias na França, quase um mês nos Países Baixos ? tratava-se de uma festa de inversão dos valores: o pobre se tornava rico, o laico, clérigo, o homem, mulher, transtornando as subjetividades que, fora do carnaval, estruturavam a ordem social. Essa "subversão carnavalesca" foi interpretada por muitos estudiosos como reminiscências pagãs na cultura cristã, ou mesmo, como em Mikhail Bakhtin, uma explosão de loucura e o humor popular, insubordinado à hierarquia e à razão da ordem feudal e clerical.

O "paradigma da subversão", entretanto, foi duramente criticado ao longo do século XX. De fato, a inversão da ordem social se dá, justamente, dentro da ordem, em um tempo e espaço circunscritos pelos poderosos. Não por acaso a institucionalização do carnaval se situa no século XII: o contexto é o auge da reorganização da Igreja e da sociedade cristã iniciada na reforma gregoriana, que fortaleceu as prerrogativas clericais na definição dos ciclos e ritmos da vida social. Ao permitir três ou mais dias de inversão, a instituição clerical reiterava a ordem no resto do ano; o carnaval funcionava, pois, como reforço da Quaresma. Caberia, pois, falar em uma "brecha carnavalesca", paralela à Festa dos Loucos, na qual um asno era vestido de bispo e conduzido ao altar da Igreja; o financiamento e participação de clérigos nessa festa atestam os limites da subversão integrada. Com a profunda redução do poder clerical entre o século XVIII e XIX ? quando nasce o conceito moderno de religião ?, o carnaval passa a responder a outros poderes, tornando-se um dos passatempos prediletos da nova burguesia europeia.

A adequação do carnaval ao poder instituído ajuda a compreender algo da história dessa festa no Brasil. Se as origens dessas festas podem ser encontradas no popular "entrudo", cuja essência era sujar a si e aos outros, o carnaval propriamente dito aparece no contexto das festas organizadas pelas elites locais, ávidas por imitar as modas europeias. A popularização desse carnaval, no início do século XX, é paralela à ascensão do samba sobre o "menos civilizado" maxixe, e não por acaso o carnaval e o samba serão engajados na política estatal de construção da cultura popular, iniciada por Getúlio Vargas. Que os poderes instituídos atuais ? o estado, as grandes corporações da comunicação e entretenimento ? ocupem um papel tão proeminente na organização da festa não deve, pois, surpreender. De qualquer modo, as inúmeras revoltas populares que tiveram início, justamente, no carnaval, são testemunho de que a História não se limita ao samba-exaltação.

O autor, prof. mestre Fábio Augusto Morales Soares, é docente da Faculdade de História da PUC-Campinas

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