GAZETILHA

Uma grande mulher

Luiza Trajano não herdou nada, não ganhou na loteria, nem fez fortuna com o casamento com Pelegrino José Donato. Todas as conquistas foram fruto de árduo e obstinado trabalho.

Por Corrêa Neves Jr | 18/02/2024 | Tempo de leitura: 7 min
Editor da Sampi

“O que fizemos apenas por nós mesmos morre conosco; o que fizemos pelos outros e pelo mundo permanece e é imortal
Albert Pike
, advogado e escritor americano

O relógio se aproximava das 16h da última segunda-feira de Carnaval, 12 de fevereiro, quando a voz da empresária Luiza Helena Trajano interrompeu as conversas marcadas por emoção e lembranças que ecoavam na sala 1 do Velório São Vicente de Paulo, no Centro de Franca. “Gente, precisamos encerrar. Estamos uns minutos atrasados e tem outra família que precisa do velório”. O aviso foi a deixa de que o momento mais difícil da despedida de uma pessoa muito querida havia chegado. Era hora de fechar o caixão de Luiza Trajano Donato, “Tia Luiza” para alguns, “Dona Luiza” para muitos, símbolo e referência para milhares.

Nunca havia visto Luiza Helena tão triste. A voz sempre firme estava naquele instante ligeiramente embargada. Todo o tempo ao lado do caixão da tia e mentora, recebendo um a um os que chegavam para mostrar seu respeito e reverência à trajetória daquela que partia, Luizinha era naquele instante não a líder, nem a empresária de sucesso, tampouco a bilionária que se transformou numa das pessoas mais influentes do mundo. Era a “filha” sentida, doida, entristecida pela perda. Luiza Trajano Donato havia morrido aos 97 anos, cerca de 15 horas antes, por volta de uma da madrugada, na casa que faz parede com a loja matriz do Magalu. “Achei que ela chegaria aos 100 anos”, repetia, vez ou outra, Luizinha.

Onofre Trajano, irmão de Dona Luiza, homem ético, decente, que fez por Franca tanta coisa que a cidade ainda desconhece ou subvaloriza, sintetizava a tristeza do momento. Voz também embargada diante dos agentes funerários que se aproximavam para fechar o caixão, repetiu várias vezes, num grito abafado, profundo, tocante: “Uma grande mulher, Luiza. Você foi uma grande mulher”.

Impossível discordar. Não apenas pelo resultado do trabalho de Luiza Trajano Donato, hoje traduzido em mil e trezentas lojas espalhadas pelo Brasil, que abrigam nas suas estruturas quase 40 mil funcionários, mas sobretudo, pelo caráter, coragem e decência que ela manteve durante toda a sua jornada.

Quando vejo manifestações dos críticos do Magazine Luiza, capazes de inventar conexões inexistentes com governos para “explicar” o colosso em que a rede se transformou, sinto pena da ignorância e absoluta mediocridade a que estas mesmas pessoas se reduziram. Ignorância, porque pouco, para não dizer nada, sabem da história. E mediocridade porque duvido que tenham trabalhado, ou construído em suas vidas, 0,01% do que fez Luiza Trajano Donato ao longo de suas quase dez décadas de existência.

Dona Luiza tinha 30 anos quando comprou A Cristaleira, uma pequena loja no Cento de Franca, usando economias de anos de trabalho como vendedora, somado ao dinheiro que conseguiu reunir com a família. Não tinha herdado nada, não havia ganho na loteria, nem fez fortuna com o casamento com Pelegrino José Donato, seu companheiro de toda a vida. Foi tudo fruto de muita luta. Da Cristaleira até inaugurar a primeira loja de departamentos, que hoje é a unidade 1 do Magazine, também no Centro de Franca, foram mais 17 anos de muito trabalho e incontáveis noites sem dormir. Deste ponto até se converter em uma rede de varejo, foram outras duas décadas de distintos e numerosos desafios e provações. Seria preciso mais algumas décadas ainda até chegar ao ponto em que o Magalu se encontra hoje, como uma potência nacional. “Noves fora”, foram praticamente 70 anos de dedicação absoluta a um propósito. Muitos tentam. Pouquíssimos, conseguem. Luiza Trajano Donato foi uma destas iluminadas.

Na sua despedida, além de Luiza Helena, do irmão Onofre, dos sobrinhos e sobrinhos-netos, chamava a atenção também a emoção de muitos funcionários. Nenhum deles simbolizou tanto o que ela significava para quem trabalha no Magalu quanto Luciano Marques, há oito anos gerente da matriz, aquela mesma loja inaugurada em 74 e que divide parede com a casa onde morou, até o final, dona Luiza. Marques permaneceu horas ininterruptas diante do caixão, zeloso, em silêncio, certamente em meio a muitas lembranças. Foi dele o privilégio de um convívio diário com Luiza Trajano Donato ao longo dos últimos anos, a quem acompanhava nas visitas da fundadora à principal loja da rede que criou, nas grandes liquidações, mas também no dia a dia de pequenas aventuras domésticas. Marques era a dignidade personificada naquele instante, leal, verdadeiro companheiro e discípulo até o instante final.

Havia também muitos “fregueses”. Esse era o termo que Luiza Trajano Donato gostava de usar para se referir aos consumidores do Magalu. Ela não podia ser mais precisa. Cliente é o comprador eventual, mas o “freguês” é aquele que vem, volta, vem de novo, e mantém uma relação afetiva com uma marca. Para Luiza Trajano Donato, os clientes do Magalu eram todos fregueses, que precisavam ser atendidos com seriedade, respeito, consideração. Foi bonito ver ali, naquela hora triste, tantos que se aproximavam relembrando histórias de décadas atrás, quando eram atendidos pela própria fundadora. E que, vez por outra, diante da dificuldade de alguém honrar o pagamento na data prevista, recebia da própria Luiza Trajano Donato um prazo adicional para pagar, uma ajuda para ter uma mercadoria que poderia fazer falta no dia a dia daquela família e não representava luxo, mas necessidade. Ouvi na tarde daquela segunda-feira dezenas de histórias semelhantes.

“Acabou, Carlos”, disse Luiza Helena, chorando, apoiada nos ombros de Carlos Donzelli, presidente da holding da família. O cortejo, em silêncio, seguiu por alguns minutos o caixão pelas ruas irregulares do cemitério da Saudade até o jazigo dos Trajano. Tudo muito coerente, alinhado aos princípios de uma mulher que perseguiu seus objetivos com afinco, garra e coragem, e que soube manter intocáveis a simplicidade, a honestidade, e o respeito por todos mesmo quando o patrimônio já se media nos bilhões.

Familiares, amigos, funcionários e fregueses se despediam ali da mulher que teve uma vida longa e abençoada, e que apesar não ter tido filhos naturais, teve na sobrinha, Luiza Helena, a continuadora do nome, dos valores, e do amor – pela família, e pelo Magalu. Morreu uma grande mulher, como bem asseverou o irmão, mas não Luiza Trajano Donato. Esta, por tudo que fez, por todos os exemplos que deixou, pela forma como viveu, é imortal. Seu legado será lembrado não apenas por alguns anos, mas por gerações. Até um dia desses, “tia Luiza”.

PS: Luiza Trajano Donato, além de toda a sagacidade como comerciante, era também muito rápida de raciocínio, o que somado à sua autenticidade produzia um combo divertidíssimo. Durante seu velório, muitas histórias engraçadas foram lembradas. Não ficaria satisfeito se não compartilhasse uma das que vivi com os leitores. Era aniversário do ‘seo’ Pelegrino e havíamos sido convidados para a festa no sítio São Gregório. Fomos eu, Milena e o João. Meu caçula devia ter uns dois ou três anos. ‘Seo’ Pelegrino, sempre engraçado, conversava com todo mundo, ressaltando a variedade de comidas que ele, como bom oriundi, valorizava. Tinha massa, tinha bacalhau, tinha carne, tinha leitoa. Foi então que Dona Luiza se aproximou da mesa. Quis conhecer meu filho, que achou a cara do meu pai, já falecido naquele instante. Então, virou-se para a minha mulher. Elogiou a elegância e a beleza e perguntou se ela havia gostado da comida. “Demais, Dona Luiza. Amo leitoa e essa está deliciosa”. Dona Luiza adorou saber. Imediatamente, disse para a Milena anotar a receita, que era muito fácil de fazer. “Você pega a leitoa...”, começou a dizer. A Milena, sem jeito, tentava explicar que tinha poucos dotes para a cozinha. “Não sei fazer, dona Luiza”. Ela retrucava. “É fácil, você vai ver. Anota aí”, continuava. A Milena, já desesperada, explicou a situação. “Dona Luiza, não sei fritar nem ovo”. Incrédula, dona Luiza não se conformou. “Nem um ovo?”. Diante da confirmação da Milena, virou-se para mim, segurou firme no meu braço, fitou meus olhos e disparou: “Que azar, meu filho. Que azar o seu”.

Corrêa Neves Jr é jornalista e CEO da Sampi.net.br, a maior rede de notícias baseada no interior. Este artigo é publicado simultaneamente nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCnet), Franca (GCN), Campinas (Sampi Campinas), Jundiaí (Jornal de Jundiaí), Piracicaba (JP), São José dos Campos (OVALE) e edição Nacional, todos afiliados à rede Sampi de Portais.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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1 COMENTÁRIOS

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  • Francisco Matos
    19/02/2024
    Final dos ano 1960, a recém chegada da TV aqui na cidade , a Tia Luiza - na calcada defronte a loja ML que contava apenas com duas portas, contatava transeuntes para adquirar uma TV, relíquia na ocasião. Eu trabalhava numa fabrica de mesa de TV, e mesa centro de tampão de madeira e ferragens. Eu era orientado pelo patrão para a fona Luiza adiantar uma parte do credito que agente mantinha para para que a gente pudesse obter um vale nos dias de sábado. Muitas vezes a loja perdia vendas por falta de mesas. Uma ocasião, lá na calcada , como citei, Luiza estava perdendo a venda de seis tvs por falta, que era objeto de extrema nessa da de na época. Disse ela \"... Me traga dez meses que adianto o dinheiro. Assim foi feito, des fizemos parte de uma carga já prontinha para entrega no sul de minas. Dona Luiza, o seu legado e\' incomparável com qualquer empresario desse Brasil. Com toda certeza seu caminho ao plano superior, esta\' iluminado para quem plantou o amor nesta vida.