PERSONA

Referência da literatura brasileira: Ignácio de Loyola Brandão

Por Ana Laura França | ana.laura@jpjornal.com.br |
| Tempo de leitura: 9 min
Letícia Gullo

Ignácio de Loyola Brandão, um dos mais destacados nomes da literatura brasileira contemporânea, nasceu em Araraquara em 31 de julho de 1936. Com uma carreira marcada por uma vasta produção literária, que inclui contos e romances, Loyola se consolidou como uma voz crítica e sensível da realidade social do Brasil. Membro da Academia Brasileira de Letras e agraciado com o prêmio Jabuti em 2008, suas obras, traduzidas para diversas línguas, refletem uma profunda relação com os desafios e transformações da sociedade. Nesta entrevista, exploramos sua trajetória, seu processo criativo e a importância de sua obra na literatura brasileira.

Quais experiências de sua infância e juventude mais marcaram sua decisão de se tornar escritor?
Loyola: A infância está em livros fundamentais como “O Menino que Vendia Palavras”, onde o personagem é um garoto que, na escola, troca o significado das palavras por balas, sorvetes e pipas. Ganhei o Jabuti de Ouro como o Melhor Livro de 2008, e o livro foi adaptado para o teatro. “O Menino que Perguntava” é a história de um garoto que desejava escrever um livro com um milhão de perguntas. E o meu muito querido “Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos” é a história de meu avô paterno que, em 1912, na cidade de Matão, construiu um carrossel com dez cavalos. Adoro este livro! Levei mais de 60 anos escrevendo e reescrevendo até chegar à solução final. Ganhei outro Jabuti.

Quais autores e obras literárias foram fundamentais para a formação de seu estilo e temáticas?
Loyola: Fundamentalmente, contos de fadas, Tarzan, Os Três Mosqueteiros, Alice no País das Maravilhas, Pinóquio, Branca de Neve, Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, Kafka, Faulkner, Somerset Maugham, Lins do Rego, Jorge Amado. Li séries de livros policiais e contos do “Tesouro da Juventude”. Eu lia, lia, lia. Tive excelentes professores de português que me ensinaram a olhar, olhar e registrar tudo ao meu redor em cadernetas ou cadernos para utilizar como tema. Nelson Rodrigues, o enorme dramaturgo que trabalhava no mesmo jornal que eu, a Última Hora, um dia me disse: “Olhe pela janela, jovem, e escreva. Mas saiba olhar e escrever.”

Como é seu processo de criação? Existe alguma rotina ou ritual que o auxilie a escrever?
Loyola: Muitas vezes faço pesquisas enormes. É preciso ter rotina e disciplina férreas. Doideira é achar o nome dos personagens. Determinado o tema, os personagens e as situações, sento-me todas as manhãs às cinco horas e vou até as nove (na época em que trabalhei na imprensa e tinha horários). Hoje, escrevo das cinco ao meio-dia. Mesmo que comece e venha o bloqueio, fico ali. Tenho sempre um começo e um final. Mas posso mudar o final; depende do andamento e da riqueza de situações. O fundamental é ter um começo e saber para onde quer ir. Depende da duração da escrita, que pode levar anos. Sempre estabeleço uma linha: começo, meio e fim. Mas, várias vezes, adiantado, mudo tudo.

Em suas obras, há uma forte ligação entre a realidade social e a ficção. Como você equilibra esses dois elementos?
Loyola: Fundamentais: social, política e ficção. A realidade, me disse o professor Jurandyr Gonçalves, grande mestre de português, é saber que a realidade pode ser mais absurda que o próprio absurdo. Olhe para “Não Verás País Nenhum”, lançado em 1981, com o Brasil sem árvores, o Amazonas como um deserto, a inexistência ou muito pouca água nas mãos de traficantes (previsão das milícias), o oceano invadindo o litoral, pessoas morrendo ao sol. Hoje, está tudo aí.

A cidade de São Paulo é um cenário recorrente em seus livros. Qual a importância dela para sua obra?
Loyola: É a minha cidade. Deixei Araraquara e me meti no mais fundo da capital, sofrendo tudo, buscando prazeres para viver de todas as maneiras. Ser jornalista me ajudou a conhecer a cidade e pessoas das mais diferentes formas. Fui agarrando personagens a cada dia. É uma cidade deslumbrante, aterrorizante, magnífica, doida e desafiadora. Uso sempre a realidade em que estou. Mergulho nela, transfiguro, dou braçadas, converso, leio jornais. Meus personagens vieram de Araraquara, São Paulo, Berlim, Roma, Salvador, de onde vivi, andei e visitei. Sugo a realidade ao meu redor, mergulho no dia a dia, uso as pessoas e as falas. Usava caderninhos; hoje, me valho do celular para anotar. Nunca me esqueço de uma resposta de Fellini, certa manhã em Roma, em 1963, quando eu engatinhava nos textos: “Sugue tudo das pessoas à sua volta. A expressão, o modo de falar, o olhar, os tiques, tudo. Copie, agarre”.

Como você vê a relação entre política e literatura? Acredita que o escritor tem um papel social a cumprir?
Loyola: O escritor tem de escrever. Ao escrever, ele está comprometido com seu tempo, sua realidade e os problemas dos seres humanos. Vejam Tolstói, Graciliano Ramos, Camus, Sartre etc. Desde que reproduza a realidade, cumpre um papel social, vamos dizer. Mas escrevo para contar histórias. Sou isso, um contador. Quando vejo, a realidade está devassada.

Ao longo de sua carreira, como você percebe que sua escrita evoluiu? Quais temas se tornaram mais relevantes para você?
Loyola: Acho que escrevo de forma mais seca hoje, mais direta e mais solta. Mas fazer essa análise é papel do crítico, do ensaísta. Não sou de ficar me analisando. Escrevo, mas sempre atento à linguagem, secando, cortando, enxugando e despalavrando.

Seus livros retratam diferentes momentos da história do Brasil. Qual a importância de abordar a realidade brasileira em sua literatura?
Loyola: O Brasil é o país onde vivo, respiro, conheço e sou alegrado ou crucificado por ele. Quando me convidam, se estiver disponível, vou. Viajei do norte ao sul. Trouxe material de cada viagem e transformei em contos e crônicas. Uma das que mais prezo é a das analfabetas de Ocara, no Ceará. Ouvi línguas diferentes. Nem sei quantos dicionários tenho de gauchês, cearês etc. Minha câmera gira para todos os lados. Aos 88 anos, acabei de fazer a Viagem Literária da Secretaria de Cultura do estado. Fiz umas quinze. Desta vez, fui aos limites do Paraná e Mato Grosso. E me assombrei com a barragem de Primavera, no Paranapanema. A literatura me fez cruzar este Brasil de tantas línguas.

Como você lida com os prêmios e o reconhecimento da crítica? Acredita que eles são importantes para a carreira de um escritor?
Loyola: Um afagozinho, carícias. Somos vaidosos também. Quem não gosta? Tem prêmio que vem com um dinheirinho.

Qual a importância do leitor para você? Como você se sente ao saber que suas obras tocam as pessoas?
Loyola: Fundamental. Sem leitor, o escritor é zero. Nada. Escrever para não ser lido? Eu me mataria. O leitor é fundamental. Quero atingir todos. Uns livros funcionam mais. “Não Verás” já vendeu um milhão em 40 anos e foi traduzido em dez línguas. Mas tive um grande fracasso recente com “Deus, o que quer de nós?”. Vendeu nada. Aí fiquei relendo e vi que falei da Covid no momento em que ela terminava e ninguém mais queria saber do assunto. Mas, segundo Churchill, os fracassos não importam, desde que você mantenha o entusiasmo.

Como você vê o impacto das novas mídias na literatura contemporânea?
Loyola: Acho meio cedo ainda para ter uma visão. É preciso analisar melhor quando essa geração tiver uma obra mais estável.

Qual sua visão sobre a literatura brasileira atual? Quais autores e obras você destaca?
Loyola: Enquanto minha geração viveu a ditadura, a censura, prisões, torturas, o medo e a falta de liberdade, os que estão entrando deparam-se com desigualdade, racismo, machismo, feminismo, religiões, LGBT e tudo que subiu à tona.

Como você imagina o futuro da literatura? Quais desafios e oportunidades os escritores enfrentarão nas próximas décadas?
Loyola: Confesso que não tenho a mínima ideia. Pode ser até que nem haja mundo. Pinta por aí uma guerra nuclear...

Algumas de suas obras foram adaptadas para outros formatos. Como você acompanha essas adaptações e qual a importância delas para a divulgação de seu trabalho?
Loyola: Tive dois livros levados ao cinema: “Bebel Que a Cidade Comeu” e um conto do primeiro livro, “Depois do Sol”. Lá atrás, muito atrás, escrevi um balé e uma peça teatral, “A Última Viagem de Borges”. Mas não são meus campos. “Não Verás” acabou de ser vendido para o cinema e também “Dentes ao Sol”, meu romance favorito. O curioso é que, quando saí de Araraquara, queria escrever roteiros. Por anos convivi com grandes nomes e escrevi uma trama, mas foi difícil a adaptação. Sinto um misto de ansiedade e felicidade.

Que conselho você daria para jovens escritores que estão começando sua jornada na literatura?
Loyola: Aconselho a ler, ler e ler. O maior artista que já conheci, o imenso biólogo que se tornou artista plástico e falecido, foi Fernando de Noronha. Ele disse: “A arte não existe, existe a qualidade de um artista. Se você for bom, o artista está em você.” Então, muito cuidado. É preciso ser verdadeiro, ter verdade.

A imagem do escritor como um solitário é comum. Você se identifica com essa imagem?
Loyola: O escritor é solitário e ensimesmado quando senta para escrever. Fora disso, é um ser normal. Vive. Mas o que é normal? Há uns esquisitos, outros doidos, outros ensimesmados, outros fechados. Tive um longo período de solidão, da adolescência ao meio da juventude, quando me achava feio. Depois, fui mudando, até me tornar um ser comum. Será que o ser comum existe hoje? Tem aqueles que enraivecem ou querem derrubar tudo, querem outro mundo quando se sentam para descrever. O escritor tem de ser inconformado, tem de ter raiva das coisas como estão, quer mudá-las para escrever. Aí não sei quem sou... E escrevo. Acreditam? Alguém sabe quem é?

Como você vê a relação entre autor e editor?
Loyola: Sem o editor, o autor não existe. Relação difícil, complexa, necessária. Há de existir uma simbiose entre os dois.

Quais conselhos você daria para jovens que desejam seguir a carreira de escritor?
Loyola: Sente e escreva... sente, escreva... rasgue, rasgue... sente e escreva... sente e escreva... sente, escreva... sente e escreva... sente e escreva... jogue fora, nunca se satisfaça, tente de novo, tente de novo, sente e escreva... sente e escreva.

Qual o legado que você gostaria de deixar com sua obra?
Loyola: O de um criador, às vezes irônico, contundente, poético em outras, que retratou o Brasil em alguns momentos difíceis, que lutou contra injustiças e combateu pela liberdade. Foi a partir da proibição de meu romance "ZERO", na ditadura, que brotou o manifesto assinado por 1.046 intelectuais dos mais expressivos do Brasil, que levou à queda da censura.

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