HISTÓRIA

Como uma viagem acadêmica com alunos da Esalq foi parar no centro da Guerra Fria?

Em 1961, a tensão geopolítica teve reflexos durante uma excursão de estudantes da Esalq aos EUA

Por Redação | 07/06/2023 | Tempo de leitura: 4 min
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Hoje é possível embarcar em um voo em São Paulo e, menos de dez horas após, desembarcar em Nova York. Há seis décadas atrás a realidade era bem diferente. Em 1961, por exemplo, o mesmo trajeto durava cerca de 25 horas, exigindo quatro escalas para abastecimento. Naquele ano, um grupo de 20 estudantes do curso de Engenharia Agronômica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) cumpriu essa jornada, embarcando em Congonhas no voo 850 da Varig. Saíram de São Paulo no dia 15 de julho e, antes do desembarque em Nova York, pararam no Rio de Janeiro, Belém, além de outras escalas em Trinidad e Tobago e na República Dominicana.

Essa saga foi o ponto de partida da Grande Excursão de 1961, tradicional viagem acadêmica que propiciava aos esalqueanos aprimorar sua formação prestes a receber o diploma universitário. “Todo esalqueno passava por essa experiência, era algo marcante na trajetória de cada um”, conta o professor Epaminondas Sansígolo de Barros Ferraz, formado em 1958 na Esalq. Em 1961, já contratado como professor do então Departamento de Física da Esalq, ele foi o chefe da comitiva. Na prática, depois de aterrissarem em solo norte-americano, durante um mês o grupo visitou propriedades agrícolas, sistemas agroindustriais, além de estabelecerem contato com representações universitárias e de outras entidades pelo caminho.

JÂNIO QUADROS

O início da década de 1960 ficou marcado pelo início da Guerra Fria. As potências EUA e União Soviética começavam ali a medir forças nas esferas militar e geopolítica, disputando aliados e coordenando ações que colocaram a paz mundial em risco. “O Brasil entrou nesse contexto a partir de janeiro de 1961, com a eleição de Jânio Quadros e seu consequente posicionamento ao lado de Cuba, que estava ameaçada de ser invadida pelos EUA”, rememora o professor Epaminondas Sansígolo. E, segundo ele, a viagem dos estudantes ganhou uma importância inesperada a partir de um telegrama.

“Não sei como o presidente Jânio Quadros ficou sabendo da nossa viagem. Ele me enviou um telegrama colocando à minha disposição todas as embaixadas brasileiras instaladas por onde quer que passássemos. Era algo inacreditável, mas ali percebi uma tensão em uma viagem de cunho meramente acadêmico.” Durante a permanência dos brasileiros nos EUA, um segundo ato presidencial subiu o tom geopolítico que aquela excursão acabou ganhando. “Estávamos em Fort Collins, Colorado, quando o presidente brasileiro enviou um memorando à Embaixada brasileira em Washington e a todos os consulados do Brasil nos EUA, salientando a “importância de nossa visita” e recomendando “total assistência” à nossa delegação.” O documento acabou sendo reproduzido em vários veículos da mídia brasileira.

Dois dias após aterrissarem nos EUA, o grupo da Esalq se apresentou ao Departamento de Estado americano para tomarem conhecimento da programação e detalhes burocráticos. “Ali tive contato com o Arden Du Bois, ou mr. Du Bois, como passamos a identificá-lo. Ele falava muito bem o português, me disse que havia trabalhado na Embaixada americana no Rio de Janeiro como adido cultural e que acompanharia o nosso grupo. Eu estranhei no início, mas ele se mostrou sempre educado, disse que sentia saudades do Brasil e como estava de folga iria nos acompanhar”, avaliou o professor. Mr. Du Bois foi figura presente e, à medida que avançávamos pelos Estados do Texas, Colorado, Nebraska, foi se enturmando para além das conversas com o professor. “Não demorou muito e ele foi se identificando com a turma. Dialogava com os estudantes e fazia-se presente nos compromissos de viagem e nas diversões ao longo do caminho. Até em guerra de bola de neve ele se envolveu”, comenta o professor em tom irônico. Apesar do entrosamento com mr. Du Bois, para o professor Epaminondas Sansígolo, a posição do convidado americano estava escancarada. “Certa vez passei numa loja e preenchi um cartão-postal a ser enviado para minha mãe aqui no Brasil. Então ele interpelava e se colocava à disposição para despachar o postal. E assim aconteceu com outros postais, de maneira que ficou claro que aquilo ali não passava de um trabalho de espionagem. Até que um dia, após uma cansativa sequência de visitas ao campo, estavam próximos à cidade de Washington D.C., quando o professor da Esalq aceitou o convite do “amigo espião” para conhecer seu escritório. “Ele me buscou no hotel com um carro imponente e seguimos para Langley, onde fica a sede da CIA – Central Intelligence Agency.  Um prédio enorme, e fui acompanhando meu amigo conforme as portas se abriam e as pessoas batiam continência para ele.”

O relato completo dessa jornada pode agora ser conferido na obra A Grande Excursão, agronomandos da Esalq de 1961. Lançado no último dia 20 de maio na Biblioteca Municipal de Piracicaba, o livro é uma iniciativa promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba (IHGP), com apoio da Prefeitura Municipal e Secretaria de Cultura de Piracicaba. Informações para acessar a obra pelo e-mail ihgp@ihgp.org.br.

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