Não consigo acreditar em destino. Pois, ao pensar nisso, entro em conflito com a também tormentosa questão da liberdade humana. Ora, se sou livre, se tenho a vontade e a capacidade de escolha, como poderia, então, acreditar haja, para mim, um destino do qual não posso fugir? Mas, por outro lado, será que, verdadeiramente, sou livre? E, em sendo-o, não seria, a minha, uma liberdade relativa, condicionada à liberdade do outro, a leis, a regras, a normas?
Esforço-me para não mais pensar nisso. E lá me vou tentando fortalecer a certeza de haver, no ser humano, o talento e a vocação. Talento são os dons pessoais, chamemo-lo assim. Vocação é um chamamento da Vida para dividir, com outros, os talentos recebidos. Creio, também, na vocação de povos, de comunidades, de agrupamentos humanos, como as cidades. Por tudo o que vi e ouvi, pelo que vivi, aprendendo e descobrindo de e em Piracicaba, fica-me uma certeza: a vocação de Piracicaba para o belo. E, portanto, para o generoso, para o bom, para a ciência e a arte. E, na música, estão os nossos mais encantadores dons. E, na música, está a nossa vocação como cidade, como povo.
Em nossa tão confusa época – quando até mesmo o som dos mísseis e das bombas nos aterrorizam – a grande sabedoria está em uma revisão daquilo que somos e no que nos tornamos. Maravilhas foram conquistadas. Mas horrores, criados. Diante do pecado coletivo da violência e do egoísmo, induzidos que temos sido pela cultura do ódio, somos convidados a retornar à ciência filosófica da arte e do belo. Que é a estética. E Piracicaba é fruto dessa dádiva, em sua herança musical.
No já longínquo 1899 – portanto, no século 19 – informações históricas revelam haver, na então pequenina terra piracicabana, 50 pianos! E três bandas, a Carlos Gomes, do Stipp, do Azarias Mello. Em Vila Rezende, Lydia de Rezende – que o escritor Coelho Neto considerou o “modelo da mulher brasileira” – semeava beleza e conhecimento. Um ituano, Tristão Mariano, mantinha uma orquestra e uma escola de música. E o que dizer de Miguelzinho, de Joaquim Dutra, também músicos, e toda a sua família? E as serestas que faziam, de nossas noites, um palco musical a céu aberto.
O século 20 viu nossa terra encantar o Brasil com personalidades artísticas extraordinárias. E seria temerário citar nomes, lembrando, apenas, que em 1925, o notável Fabiano Losano criava a pioneira Sociedade de Cultura Artística de Piracicaba. Uma história de amor, então, aconteceu e se tornou responsável pelo surgimento de nosso tesouro artístico: a Escola de Música de Piracicaba. Maria Apparecida, a Cidinha, e Ernst conhecem-se, apaixonam-se, casam-se. E o casal Mahle planta a escola que se tornou conhecida mundialmente.
Pois bem. Tudo o que, na realidade, quero escrever é a respeito de mais um legado que, com simplicidade, a nossa Cidinha deixa a Piracicaba. É o seu livro de recordações, abarcando o período de 1936 a 2021, sobre o ambiente musical da cidade e a fundação da Escola de Música. É, em sua síntese, um tesouro histórico, referencial para os necessários estudos sobre essa instituição que elevou Piracicaba a uma distinção ímpar.
Ernst Mahle e Cidinha – agora, nonagenários e ainda atuantes – deram a Piracicaba um Olimpo musical. O casal simboliza a nossa Euterpe, a musa grega da música. E as recordações de Cidinha, na simplicidade de seu livro, deveriam estar em nossas escolas, fonte de inspiração para as próximas gerações. Em tempos de guerra, é uma lembrança de paz. Fica a indagação: a música seria, mesmo, o nosso destino?
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