O céu azul em retalhos

Por Rubinho Vitti | 29/06/2020 | Tempo de leitura: 3 min

Certo dia parei para fazer um exercício mental. Qual é a minha primeira lembrança da vida? Dez anos de idade? Oito? Não, foi aos sete! Mas aos seis eu ainda lembro. Que difícil! Vocês já tentaram voltar no tempo assim?

Lembro-me bem das minhas avós, por exemplo. Puxava a pele já enrugada das mãos delas, fazia “lero-lero” com a papada, mexia no cabelo (elas odiavam). E olha que ambas se foram quando eu era ainda bem novinho. Mas eu me lembro.

A primeira, vó Hermínia, homônima da filha, minha mãe, é uma lembrança mais antiga. Lembro da casinha dela, dos brincos com pedras azuis, o penteado impecável.

Ela se foi quando tinha três anos. Quando estava sendo velada, na sala da casa de um tio, reparei que tinha algo preso nas narinas dela (aqueles algodões que colocavam, ainda não sem bem o por quê). Questionei-me: “Será que é ‘caca de nariz’ endurecida?”, em um doce pensamento inocente de criança.

A vó Justina, minha avó paterna, quando demorávamos a visitá-la, sempre dizia: “Achei que ‘ceis tinha’ morrido”. Eu tinha uns cinco ou seis anos quando ela partiu. Meu pai me carregou no colo para tocar em sua testa durante o velório. Consigo lembrar do meu estranhamento com aquela pele fria até hoje.

Lembro dos nossos bichinhos. O primeiro gato, Chatran, nomeado assim por conta de um filme que meu pai uma vez locou em VHS para assistirmos às quartas-feiras, quando tínhamos nossa sessão de cinema particular enquanto minha mãe se reunia com um grupo de amigas na sala.

Em uma dessas quartas, Chatran dormiu na roda do carro de uma das amigas, que passou por cima dele quando foi embora. Choramos tanto. Minha mãe nunca contou pra ela. E era mais uma perda para registrar na memória. Dá para ver que aprendi a lidar com a morte bem cedo.

Mas lembro coisas de antes de tudo isso. Minha primeira casa. Era um chão confortável que eu engatinhava quando bebê. Um carpete que ora tinha cheiro de mofo, ora dava para deitar e encostar a cabeça, como um travesseiro. Minha mãe dizia: “Tire o ouvido do chão porque entra formiga.”

Mas a primeira lembrança foi antes ainda. Uma colcha de retalhos azuis. Era nítida como o céu. Eu estava acordando e tentando enxergar o que via além de algumas grades de madeira que cercavam a minha cama. Cama, não. Berço!

O sol entrando pela janela não deixava ver nitidamente. Mas era uma cama com o mesmo acolchoado ao lado. Uma garota dormia brevemente enquanto eu ainda tentava separar minhas pálpebras.

A primeira imagem é de uma calmaria sem tamanho. Silêncio por toda parte e um calor macio que afagava minha pele. Talvez nessa lembrança eu percebi que estava vivo. Bem depois do parto, da primeira mamada nos peitos de minha mãe ou até mesmo depois da primeira mamadeira.

Minha vida parece ter começado ali. Às vezes dois outros seres humanos chegavam e me elogiavam gratuitamente, me carregavam, sorriam, dizendo que eu era o amor da vida deles. Fui descobrindo aos poucos. Éramos uma família. Eles e eu.

Eu? Eu quem? Desde a primeira lembrança, naquele berço na segunda metade dos anos 1980, passando pela morte das avós, do gato, do carpete, em meio a tantas outras lembranças em três décadas e meia de vida, ainda não sei realmente o que sou.

Vivemos a vida inteira procurando isso e talvez certos sortudos encontrem a resposta. Eu ainda busco. Mas esse deve ser o barato dessa loucura toda, não é mesmo?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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