Hélcio Costa

A banalidade do mal

Por Hélcio Costa é jornalista e diretor da empresa Matéria Consultoria & Mídia | 27/05/2022 | Tempo de leitura: 3 min

A constatação é triste, mas é real: cada vez mais estamos submersos em uma onda crescente de violência.

Dois episódios recentes levam a essa constatação: a morte do pedreiro Genivaldo de Jesus Santos, asfixiado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, e a chacina da Vila Cruzeiro, com um rastro de 26 mortes no Rio.   À morte em Umbaúba (SE), a PRF emitiu uma nota em defesa dos policiais. A operação no Rio, a segunda mais letal do Estado, mereceu os parabéns do presidente Jair Bolsonaro. Tão triste quanto a onda de violência é a sensação de que estamos nos acostumando a ela, principalmente quando ela é cometida em nome do Estado. Essa é a tragédia maior dentro de muitas tragédias.

A morte de Genivaldo e a chacina do Rio são a expressão gritante da banalidade do mal, o mal cotidiano, praticado não por carrascos e loucos, mas por pessoas comuns, que optaram, simplesmente, por não pensar, como se cumprissem uma ordem estabelecida, fruto da didática da violência. A expressão  foi cunhada pela filósofa Hannah Arendt, que cobriu, como jornalista, o julgamento de Adolf Eichmann --oficial da SS, a polícia política nazista, encarregado de organizar a logística da “solução final”. Isto é, embarcar e levar milhões de judeus e demais prisioneiros políticos e de guerra aos campos de concentração, e, ali, para a morte. Em “Eichmann em Jerusalém”, Arendt trata o nazista não como monstro, mas como um burocrata zeloso, que aceitou e cumpriu ordens sem as questionar. O mal, perverso, torna-se banal em uma sociedade com valores diluídos.

Trazendo essa lógica para o Brasil, se lá em cima, em Brasília, a ordem é “prenda e arrebente”, por que não trazê-la para as ruas?

Estava pensando nisso quando me deparei com um artigo de Reinaldo Azevedo, na “Folha”, sobre a tragédia em Sergipe. Ele recorda um diálogo travado entre o presidente Costa e Silva e seu vice, Pedro Aleixo, no dia 13 de dezembro de 1968, data do AI-5, o Ato Institucional que “fechou” ainda mais a Ditadura de 64. Aleixo temia que um ato tão repressor trouxesse terror ao país. “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina”, disse. No Brasil de hoje, o perigo pode estar no “guarda da esquina”? Em que momento o “guarda da esquina” deixa de ser um policial e passa a agir como miliciano? A função do policial é uma das mais dignas dentro da estrutura do Estado, quase sempre cumprida no limite da segurança pessoal. Excessos há? Sim, mas tendem a ser uma exceção. Mas o cerne não é esse. Minha pergunta é simples: quando o “guarda de esquina” vira miliciano? É importante ter respostas para evitar novos incidentes como o de Sergipe --onde um pedreiro negro foi morto covardemente dentro de uma viatura da PRF. Nesse contexto, a apologia à violência feita pelo presidente da República, quase que diariamente, não ajuda em nada. Estamos vivendo uma onda crescente de violência. E, mais grave, estamos nos acostumando a ela. Se quisermos avançar como Nação, sociedade e pessoas, o desafio é encontrar o equilíbrio entre a segurança do cidadão, os limites do Estado, a eficácia da lei e a profissionalização das forças de segurança.

Eleições como as de 2 de outubro são boas oportunidades de passar o país a limpo. Não podemos perde-las. Mas só isso não basta, precisamos impedir que o mal mergulhe suas raízes dentre nós.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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