Ideias

Alma de plástico de um derrotado campeão invicto

Por Guilhermo CodazziJornalista e escritor, editor-chefe de OVALE e da Gazeta de Taubaté | 29/09/2017 | Tempo de leitura: 2 min

Imbatível. O adjetivo define, com a precisão dos lançamentos milimétricos de Gérson, o meu Grêmio. O melhor time de futebol do mundo (pelo menos do meu). O escrete era formado por 10 craques de plástico branco e um arqueiro intransponível! Uma grande muralha feita de caixinha de fósforos, areia, pedras e chumbinho, envolvida em fita crepe e durex.

Time de meter medo, afinal a concorrência era das maiores lá em casa. Meu irmão Julio e eu tínhamos uma coleção com 300 times do mundo inteiro. A gente comprava alguns na loja, com o dinheiro que minha avó dava para tomar lanche na escola, mas a maioria confeccionávamos nós mesmos, usando vidro de relógios, tampinha de refrigerante, botões de camisa e palhetas. Tudo virava botão.

Ficávamos horas e horas recortando os jornais e revistas, pegando distintivos raros para criar novos times os escudos eram colados em uma folha sulfite, que era então devidamente xerocada na papelaria ali perto de casa.

Pode até parecer brincadeira, mas botão era coisa séria. Todos os jogos, mesmo os amistosos, eram registrados em cadernos, daqueles com espirais, que viravam súmulas.

E, em meio aquela numerosa coleção, o Grêmio era o número um. O melhor time! Chiquinho, Julio, Fernando e Dimas eram meus fregueses. E partida após partida, campeonato após campeonato, meu escrete tricolor seguia invicto. O bicho era garantido!

Com o passar do tempo, porém, o sabor das vitórias ficou diferente, ganhou um amargor. A cada triunfo, paradoxalmente, eu sentia que a derrota avizinhava-se. O medo de perder me dava frio na barriga.

E foi piorando. Quando o adversário pedia 'pro gol', indicado que ia executar um arremate, eu mexia o goleiro para cá, depois para, com o danado do medo de ter a meta vencida. O medo de perder aquela sensação de invencibilidade.

Então, numa manhã, logo nas primeiras horas, peguei o meu Grêmio, todos os botões, um a um, e guardei numa velha caixa de sapato. Aquele time não retornaria aos campos. O Grêmio, como campeão com alma de plástico, pendurou a palheta invicto. E derrotado.

Hoje, anos depois, pensando com meus botões, posso dizer -- com a exatidão de um chute de Pelé -- que aquela foi minha maior derrota nos campos de botão. O meu Maracanaço.

P.S. Anos atrás, na dedicatória de um livro, li um poema de Carlos Drummond de Andrade e, com um misto de saudade e melancolia, recordei-me dessa história, lembrei-me da equipe do Grêmio, do meu derrotado campeão invicto do futebol de botão. Em sua lápide, acrescentei o poema de Drummond:

'A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade'..

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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