Dedo no gatilho. Carrasco e réu estão frente a frente, na encruzilhada onde a vida arrefecida pela sentença fatal beija a face fumegante da morte. Cruzam-se ali, naquela estrada inóspita e empoeirada, dois estados completamente antagônicos, dispares: o Estado Democrático de Direito e o paralelo, onde o PCC (Primeiro Comando da Capital) é a lei, o juiz e o algoz.
Condenado pelo tribunal da facção, o adolescente carrega nos olhos a expressão de quem já sabe que vai morrer. Sequestrado em Jacareí, no Parque Meia Lua, ele foi levado a Taubaté e, diante do júri composto por cinco ‘irmãos’ (como são apelidados integrantes da organização), julgado por assassinato. Nessa corte do crime, ouvem-se os acusadores, defensores, testemunhas e, por fim, o juiz.
O veredicto? Pena de morte.
E a sentença especificava ainda um detalhe diabólico: o carrasco deveria ser um parente do réu. Havia matado o irmão de um dos membros da facção, teria a vida tirada por um membro de sua própria família. Por dois dias, até a definição do carrasco, o réu havia sido mantido em um cativeiro, no Esplanada Santa Terezinha. Mas é chegada a hora derradeira. Um tio do menino foi recrutado para cumprir a lei do PCC.
Trêmulo, com a arma nas mãos, ele obviamente exita, nega-se a matar o sangue do seu sangue. Neste tribunal, porém, não há recurso. Um dos criminosos, então, segura a mão do tio e pressiona o dedo dele no gatilho, disparando a arma. Em seguida, o corpo do jovem, que mais tarde seria desovado em uma estrada rural de Tremembé, é então crivado de bala pelos irmãos. É a lei do PCC: vida se paga com vida, sangue se paga com sangue.
TABULEIRO
Xeque-mate. Com a sua própria lei, o PCC (Primeiro Comando da Capital) movimenta os seus peões no espaço deixado vago pelo Estado, avançando por casas e casas perigosamente na direção ao rei e à legislação vigente. O tribunal do crime, como o exemplificado na reportagem de capa, com um crime ocorrido em 2017, é montado diariamente na RMVale, o berço da facção e a região mais violenta de São Paulo.
No jargão da organização criminosa, trata-se do ‘tabuleiro’ — nome para os tribunais, onde a definição sobre quem viverá ou morrerá é feita como o lançar de dados. “Eles [PCC] montam o tabuleiro todos os dias. Mas matar alguém é raro, hoje bater é o mais comum”, diz um agente especializado no combate à facção criminosa no Vale.
“Quando o cara [o ‘réu’] é sequestrado, nem dão o direito dele falar. Ele fica amarrado, com alguém tomando conta. Aí vem a ordem para matar e eles dão o ‘ok’ para o sequestrador. Depois a gente acha o corpo. O PCC não cobra só se fizer algo para alguém da facção. Se fizer qualquer coisa na quebrada deles, eles cobram”, diz uma fonte policial ouvida pelo jornal.
O júri é composto por irmãos presos e que estão nas ruas. Os ‘crimes’ mais graves são estupro e roubo dentro do PCC, em geral ligado aos dividendos obtidos com a venda de drogas. O tribunal — ou tabuleiro, porém, é usado para decidir imbróglios nas ‘quebradas’, incluindo até os problemas dos moradores.
Em geral, o tribunal tem acusador, defensor e júri, sendo transmitido por meio de celular.
DECRETADO
Aplicada nos tabuleiros, a pena de morte é chamada de ‘decreto’. No entanto, ela seria rara.
“Até para matar ‘jack’ [a gíria para estuprador] está difícil. É preciso pedir autorização”, afirmou um homem ligado ao tráfico de drogas em São José, autor de ao menos três homicídios.
“Aqui, levaram um cara para lá [tabuleiro], acusaram ele de ser dedu-duro da polícia. Foi levado, mas não conseguiram provar. E o PCC não deixou matar. Daí, o rapaz [traficante que pediu o julgamento] ficou chateado, porque não pôde ‘fazer’ [matar]”, disse outro homem ligado ao tráfico.
BANDEIRA BRANCA
Nas chamadas ‘quebradas’, o tráfico atribui ao PCC a redução drástica na quantidade de homicídios — a posição é atestada por parte dos especialistas em setor, e questionada por outra parcela, assim como pelo Estado.
Em áreas como a região sul de São José, a ordem é conhecida como ‘Bandeira Branca’.
As fontes policiais, agentes, ex-presos e pessoas ligadas ao crime foram ouvidas na condição de serem mantidas em sigilo.
CRIAÇÃO
Mais temida facção criminosa do Brasil, o PCC teve como ‘berço’ o chamado ‘Piranhão’, pavilhão anexo da Casa de Custódia de Taubaté, à época a unidade que abrigava os presos mais perigosos de São Paulo.
Após uma partida de futebol, em 31 de agosto de 1993, no ano seguinte ao massacre do Carandiru, presos decidiram criar uma espécie de sindicato do crime.
O primeiro estatuto do PCC, escrito nas celas da unidade, se referia à Casa de Custódia como ‘campo de concentração’ e ‘fábrica de monstros’.
Hoje, a organização já controla o tráfico em oito estados e está na disputa em outros 13, além do Distrito Federal, tendo 30 mil integrantes — diz o livro ‘Guerra – A ascensao do PCC e o mundo do crime No Brasil’, dos pesquisadores Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias.
TRÁFICO
‘A droga aqui sempre passa na mão do PCC’, diz um dos agentes envolvidos na linha de frente contra o crime.
Produzida em países vizinhos, com uma escala industrial, ela entra no Brasil por fronteiras desprotegidas — pelo Paraná e Mato Grosso do Sul — e via terrestre chega até a capital paulista, para ser distribuída para diversas regiões, inclusive a RMVale.
A entrada ocorre em cidades paranaenses como Maringá e Cascavel, e sul-mato-grossense também, como Ponta Porã, nas proximidades da paraguaia Salto Del Guaíra. O PCC atua no atacado e no varejo. O transporte das drogas é feito com caminhões. Na zona leste paulistana, o entorpecente é distribuído para o Vale — onde o PCC é o maior responsável pela venda de droga, seu carro-chefe.
EXPANSÃO
O Comando não tem limite territorial, todos os integrantes que forem batizados são componentes do Primeiro Comando da Capital, independente da cidade, estado ou país, todos devem seguir a nossa disciplina e hierarquia do nosso Estatuto. O trecho acima reproduz o artigo 12 do estatuto do PCC, em sua terceira versão, que define o conjunto de regras que traça as diretrizes para ‘irmãos’ espalhados pelo país e até no exterior.
Depois da série de ataques de 2006, quando o PCC deflagrou uma guerra contra as forças de segurança em São Paulo, a facção definiu como prioridade a expansão de suas forças para o resto do território brasileiro, de olho no milionário mercado do tráfico. A meta foi descrita em cartilha editada pela organização, em 2007, que definiu entre os focos uma ‘atuação política’, inclusive cobrando que presos tivessem direito ao voto.
A expansão do PCC é uma responsabilidade da ‘Sintonia Geral dos Estados’, que tem como meta organizar e difundir a facção e ‘batizar o maior número de criminosos’ pelo Brasil. Estima-se que a organização esteja presente em mais 21 estados.
Já a Sintonia Geral dos Outros Países é responsável por levar o PCC para os países vizinhos, principalmente Paraguai e Bolívia, importantes fornecedores de drogas — carro-chefe do caixa da organização criminosa.
“A partir de 2006, a facção se estruturou como uma verdadeira organização, com escalões de hierarquia e funções bem definidas, disciplina rígida, criação de um setor jurídico, corrupção de autoridades, tentativa de se infiltrar no meio político,compartimentação de funções e informações, utilização de empresas de fachada”, atesta relatório de investigação feita pelo Ministério Público.
A reportagem ouviu um ex-candidato a vereador que afirmou ter tido o apoio do PCC em uma eleição passada no Vale do Paraíba, que é o berço da facção que hoje completa 25 anos de existência — ele não foi eleito.
ESTRUTURA
Como uma espécie de multinacional do crime, a facção adota estratégias empresariais tendo como objetivo ampliar os seus lucros. De acordo com as investigações do MP e das forças de segurança, o PCC é dividido em sintonias — os ‘departamentos’. A ‘Sintonia 012 ou 2’, por exemplo, é responsável pela região do Vale do Paraíba, onde a organização surgiu em agosto de 1993.
Todos eles respondem à ‘Sintonia Final’. “O organograma de Comando é como uma empresa comercial. Qualquer desvio na operação, o PCC determina execuções sumárias daqueles que descumprem as regras. Eles próprios julgam e determinam as penas, muitas vezes cumpridas com a morte”, diz promotor ouvido pela reportagem, na condição de não ter o nome revelado.
A prática punitiva é descrita no estatuto, em artigos como, por exemplo, o número nove: “o preço da traição é a morte”.