Duzentos anos depois, os filhos de Franca acordaram perplexos com a notícia de que este ano não haveria Natal. Não era preciso consultar outros veículos da imprensa, todos davam crédito e veracidade ao que se lia no portal GCN/Sampi, e ali, na primeira página, a manchete estarrecedora anunciava: Herodes declara até o fim de dezembro a morte de todas as crianças nascidas na Palestina em 2024.
Dois mil anos de história impactavam a realidade, feito acidente de automóvel no cruzamento das avenidas na rotatória do posto Galo Branco, como se a notícia revelando “a crueza da vida como ela é” também comprovasse a atualidade dos textos bíblicos que a igreja repetia nos ritos das missas, ano após ano.
Foi notável o desdobramento da notícia. Não só os de perto, mas o país todo entrou num estado de perplexidade, de convulsiva resolução coletiva só explicado pela convicção dos economistas de que “sendo produtivo, haveríamos de substituir”. Foram duas semanas bem agitadas, quase ninguém teve tempo para repensar e todos aceitaram as mudanças que se seguiram.
Por orientação da diocese sempre atenta aos significados simbólicos, as fábricas mudaram as cores dos pisca-piscas que agora tinham o tom púrpura, o mesmo que os padres usavam nas vestimentas durante a paixão de Cristo. A indústria, sempre um passo à frente na leitura do imaginário coletivo, trocou na linha de produção os desejos de consumo que haviam sido estocados desde a Páscoa e num zap tudo entrou na lista dos mais vendidos. Nos supermercados, os estoques de peru foram congelados e deram lugar à sangria desmedida de suínos apanhados antes da sua hora, ainda bebês na maternidade dos porcos.
Em seguida, influenciadores nas redes sociais mudaram seus discursos de “renascimento e fraternidade” para “a mortificação necessária para alcançarmos a felicidade” para ganhar mais seguidores, mais likes e engajamento emocionando quem já tinha perdido a esperança de seguir em frente sem Natal. Por fim, o buscador de pesquisas no Google trocou a primeira letra da palavra natal por “M” e na mesma velocidade em que a palavra original era esquecida esquecíamos a guerra, esquecíamos Belém sitiada e a Virgem Maria em agonia de parto.
Como se sonhássemos não entender, substituímos o desejo de confraternização por um estranho sentimento de vingança abotoado, e quando a prefeitura local anunciou que a maternidade da Santa Casa estava desativada até segundas ordens ninguém estranhou. Para alívio das consciências, os mesmos veículos de comunicação mantiveram coesos o propósito de proteger a sanidade coletiva, e desde o anúncio da impossibilidade do nascimento de um menino Rei na Palestina, um salvador à moda antiga, passaram a vender pacotes promocionais de férias para o Carnaval. É impressionante nossa capacidade de adaptação mesmo frente à mais absurda violência, talvez porque padecemos de memória e nos habituamos e reprimir indignação e amor no mesmo compartimento do inconsciente insondável.
Todo estranhamento diante do contexto inusitado incompreensível foi curto, logo parecia natural que não houvesse mais nada para mudar, que tudo estava como deveria ser, que antes não tinha sido diferente. Uma necessidade urgente quase desintegradora fora restaurada pelos mercados e a nova expectativa de um bom Natal tomou conta de cada pessoa, crianças e velhos, mulheres e homens, tanto os de má fé quanto os de boa vontade.
Tudo transcorria reformado até que o improvável aconteceu dentro do impossível amorosamente revelando o conluio (ou colludium do latim que significa jogo, entendimento e combinação) desmascarando o propósito sionista espalhado pelo mundo. Toda revelação é sempre óbvia já que é apenas o véu da nossa ignorância se rompendo.
Não sabíamos, mas essa edição especial do Caderno Nossas Letras para o fim de ano estava preparada bem antes da primeira notícia do massacre dos inocentes na Palestina e o anúncio depravado de Herodes: foi publicado a foto do primeiro bebê de dezembro nascido na própria residência em Franca no bairro Santa Terezinha, acompanhando uma crônica-poética comparando a casa simples onde viviam essas pessoas devotas de São Francisco à manjedoura coberta de palha, onde o Rei dos pobres e oprimidos do mundo todo fora acolhido e presenteado pelos reis magos. A hipérbole na comparação estarreceu os primeiros leitores e a foto da criança atravessou continentes adoçando memórias afetivas e corações petrificados.
O exagero da ideia, assim expressa na ênfase radiante do nascimento, exaltava com igual ou maior impacto ao do esquecimento coletivo, a necessidade urgente de acordarmos para o verdadeiro significado do Natal.
Baltazar Gonçalvez é professor de História formado pela UNESP, membro da Academia Francana de Letras, lançou recentemente o livro de contos “Quando permitir a maré” pela editora Patuá.