ARTIGO

O que pode nos fazer acreditar que 'menino veste azul e menina, rosa'?

Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada

Por Francisco Estefogo | 01/12/2023 | Tempo de leitura: 6 min
Taubaté

A dinâmica da tessitura social, que flutua na retórica colonial, ultimamente, sob densa névoa da desinformação, é um dos elementos mais preponderantes na nossa constituição como sujeitos. Sobreleva ressaltar que a vigente ambiência sócio-histórico-cultural é ininterruptamente atravessada por ideologias, crenças, desejos, vivências e pensamentos, contingências inexoravelmente reverberadas nas linguagens. Portanto, por estarmos, com uma certa frequência, desprovidos de senso crítico, bem como de repertórios multiversos e plurilíngues, podemos correr o risco de conceber a vida como um fenômeno posto, a ser meramente replicado, inapelavelmente contestado e draconianamente seguido.

Em virtude de a população usualmente se orientar por declarações superficiais, principalmente provenientes da ágora infinita e rasa dos múltiplos espelhos das redes sociais, onde tudo se sabe, se vê e se multiplica em questões de segundos, o exibicionismo vazio e o cinismo exacerbado, referentes à fluidez dos modos de ser, desejar, viver e pensar, empreendem-se e se amalgamam de forma contundente. Consequentemente, dada a qualidade precária da nossa criticidade sobre a conjuntura homogeneizadora, opressora e preconceituosa, normalmente decorrente da fadiga informativa que nos leva à paralisia analítica, refletir sobre maneiras genuínas de vivências é um ato de resistência contra a insensibilidade do pragmatismo e dos adornos das narrativas contemporâneas, especialmente, quando se trata da identidade de gêneros, sexo, orientação sexual e seus desdobramentos.

Nesse campo, por mais que seja um momento de júbilo e, para alguns, fofo com os familiares e amigos, somos doutrinados, ainda na paz e no conforto do caloroso embrião materno, por exemplo, pelos famigerados “Chás Revelação”, preconizadores das cores determinantes do sexo masculino e feminino. Muitas vezes, essa premissa do rosa e do azul permeia toda a nossa trajetória de vida. Caso não a acolhamos ou tampouco a incorporamos, em situações extremas, somos motivos de chacota, principalmente, no ambiente escolar, coorporativo e, por vezes, familiar. No dia a dia, é muito comum ouvir enunciados predominantemente pragmáticos, temperados com delírios acríticos, tais como: “Nossa, de camisa rosa ... sei não...”, ironiza o chefe do departamento em pejorativa referência ao novo funcionário. “Melhor comprarmos tudo amarelo, pois ainda não sabemos o sexo do bebê”, reflete a mãe de primeira viagem, como se estivesse se isentando do indefectível azul ou rosa.

Exageros narrativos à parte, esse episódio cultural relacionado ao azul para o menino e ao rosa para a menina, muito em alta nos dias de hoje, sobretudo, eternizado na algazarra da esgrima verbal das redes sociais, sempre elas, é apenas uma amostra de como somos constantemente colonizados, leia-se, oprimidos, e, igualmente colonizadores, amiúde, sem perceber. Vale lembrar que há pessoas que se consideram legitimamente não binárias. No mais, a suposta definição de ser menino ou menina, do ponto de vista da biologia, diz muito pouco, ou absolutamente nada, acerca de como nos identificamos socialmente, porque nossa identidade é, outrossim, uma construção social, mas não somente um padrão biológico.

Nesse sentido, Judith Butler, filósofa americana, ressalta a exigência da sociedade hodierna no que diz respeito ao alinhamento, preferencialmente heterossexual, entre sexo, gênero e desejo. Em outras palavras, o gênero passa a ser um conjunto de normas socialmente instituídas, por meio de uma lógica binária e fruto do sistema patriarcal vigente, mas não por um complexo de significados e vontades vivamente marcadas no nosso corpo e nas nossas maneiras de agir e desejar. Nesse mesmo esteio, a icônica máxima de Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa existencialista, feminista e ativista política francesa, ou seja, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, corrobora a força dos meandros sociais na estruturação da nossa identidade sexual. Dito de outro modo, por essa perspectiva do existencialismo, a nossa essência não é definida ao nascermos, mas ao longo da nossa trilha existencial. Ou seja, a existência humana precede a sua essência. Desse modo, uma vez esse curso de vida colonizado, igualmente será a nossa natureza como humanos. Para a pensadora, é a sociedade que nos obriga a, de algum modo, assumir os papeis de gênero.

Portanto, é preciso ficar à espreita do ditames concernentes ao escopo do sexo e de suas implicações, uma vez que as construções sociais tendem a forjar estereótipos. No mais, um risco adicional para o momento de aparente letargia que vivemos em relação à colonialidade da seara sexual é que nos sintamos tentados a substituir a inação pela verborragia e, assim, propagar esse círculo vicioso e perpetuar a colonialidade sexual vulgo “aceita”. Se quisermos que o viés decolonial concernente à complexidade sexual humana seja refletido nas linguagens da trama social, é preciso expandir os limites do mero “azul ou rosa”, além do binarismo e da dicotomia hierarquizante do sexo. Como já dizia Einstein (1879-1955), pai da teoria da relatividade, “loucura é querer resultados diferentes fazendo tudo igual”.

Nessa toada, Kwane Appiah, filósofo e escritor anglo-ganês, faz um alerta atinente ao que ele se refere como essencialismo identitário. Trata-se, na verdade, do rótulo que, oriundo de processos sociais reducionistas, estigmatizantes e opressores, empobrece-nos como seres humanos. O pensador traz à baila a importância de se questionar todas as normas fixadoras de balizas e hierarquias de gênero, de raça, tal como de classe social. A rigor, ainda que o meio social seja um forte catalisador da nossa formação como indivíduos, temos a liberdade e o poder de nos definirmos e nos compreendermos com base nos valores, vivências, desejos e ideias que aprendemos a cultivar na nossa singular trajetória existencial. Ademais, o autorreconhecimento identitário como Direito Humano está estritamente relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Azul, rosa, verde, preto, amarelo e por aí vai. Não importa qual código, palavra, cor ou outro símbolo que a sociedade vai usar para nos rotular. A vida é unicamente nossa. Por mais que, às vezes, seja um grande desafio se desvencilhar dessas etiquetas sociais e, consequentemente, da opressão, talvez, inspirar-nos em um dos emblemáticos poemas de Cecília Meireles (1901-1964), gigante poetisa brasileira, possa nos encorajar para sermos como as flores, extensão do cosmo. Embora sejam brancas, vermelhas, amarelas, dentre outras inúmeras cores, e terem formas e tamanhos irregulares, além de exalarem diversos aromas, essas formosuras da natureza fascinam, embelezam e encantam igualmente. Dessa forma, como também somos parte da dimensão cósmica, é legítimo sermos o que somos, vestirmos todas as cores imagináveis e seduzirmos quem quisermos. Entoa a sublime escritora carioca: “quem precisa explicar /o momento e a fragrância /da Rosa, que persuade /sem nenhuma arrogância? / E, no fundo do mar, /a Estrela, sem violência, /cumpre a sua verdade, /alheia à transparência”.

* Francisco Estefogo é membro titular da Academia Taubateana de Letras, Francisco Estefogo é pós-doutor em Linguística Aplicada pela PUCSP e professor do Programa de Mestrado em Linguística Aplicada da Universidade de Taubaté. No momento, é pós-doutorando em Filosofia da Linguagem na UNIFESP e também na PUCSP.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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