OPINIÃO

Você tem fome de quê?


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Sempre achei o refrão da música “Comida”, dos Titãs, lançada em 1984, muito eficaz em descrever um adágio da medicina tradicional chinesa, onde diz-se que por “debaixo” de um excesso há sempre uma deficiência, referindo-se ao funcionamento de órgãos e vísceras. O mesmo pode ser dito também no campo mental, visto que o próprio pai da psiquiatria popularizou o adágio: “Atrás de toda compulsão existe uma falta”.

Adoro todas as teorias de tratamento e cura, mas neste caso tenho uma empatia maior com a linguagem poética da música, que é sintética, visceral e também provocativa ao nos perguntar qual o nosso desejo mais profundo.

Vários caminhos são possíveis para a resposta dessa pergunta instigante, no entanto, o clima natalino com sua troca de presentes e as confraternizações de final de ano nos direcionam para uma olhada para dentro de nós mesmos e convidam a descobrir o que queremos, de fato, quando trocamos esses agrados e desejos de prosperidade.

Veja que este olhar intimista é invocado com frequência por aqueles que criticam a mudança de mentalidade das festas de final de ano de um feriado religioso e espiritualizado para um incentivo consumista, onde se presenteia os outros e a si mesmo com um monte de “coisas” que não se precisa realmente. O que seria, afinal das contas, aquilo que de fato se precisa? O que e onde precisa ser visto para ter ao menos uma noção para essa resposta?

Quando se deseja obter qualquer objeto, seja ele físico ou mesmo abstrato (atenção, elogios ou mesmo gratidão são exemplos de “objetos” abstratos), têm-se normalmente para preencher algo dentro de si. Todos nós procuramos uma sensação de completude e bem-estar quando procuramos algo que “encaixe” e “caiba” na nossa vida.

No entanto, certas necessidades nossas nunca estão realmente resolvidas, podendo ficar ainda mais relevantes quando procuramos “tapar” a sensação de incompreensão e impotência que elas nos dão com pequenos momentos de prazer que vêm em embrulhos de papel colorido, laços brilhantes e enfeites de lantejoulas.

Essa sensação de vazio que precisa “ser resolvido” aumenta muito nesta época de fim de ano, onde existe uma “cobrança” por renovação e formação de metas. Torna-se um desespero ainda maior quando se percebe que talvez não se tenha cumprido as anteriores ou mesmo se desviado tanto que o proposto para o ano foi até esquecido ou mesmo abolido.

Um momento de equilíbrio emocional é necessário para observar-se com carinho; o vazio dentro de cada um de nós só é percebido desta forma pela inevitável comparação da nossa realidade com o que se esperava que ela fosse, de uma forma ideal. Quando não se consegue uma “sobreposição” exata, o que falta corre o risco de tentar ser preenchido, quase sempre sem sucesso. Persistir pode gerar comportamentos obsessivos e muito prejudiciais à saúde, como as criticadas práticas de consumismo desenfreado.

Gosto muito de presentes, de dá-los e recebê-los, igualmente, não existindo nenhuma crítica neste ato, só a recomendação de fazê-lo com a análise prévia do que se espera com a troca, para não ressaltar ansiedades velhas com novos adornos.


Dr. Alexandre Martin é médico, especialista em acupuntura e com formação em medicina tradicional chinesa e osteopatia

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