Comovi-me com a história de Vaqueirinho, Gerson de Melo Machado, o menino de infância marcada pelo abandono e violência e que assim prosseguiu até seus 19 anos, quando adentrou o recinto de uma leoa e foi morto por ela.
Uma conselheira tutelar de João Pessoa - PB, Cláudia Carvalho, que acompanhou o jovem durante anos, relatou detalhes sobre a sua vida marcada por sofrimento e vulnerabilidade.
Conheceu o menino quando tinha apenas 10 anos, ao ser retirado da família e acolhido pela rede de proteção. Quatro de seus irmãos foram adotados, com exceção dele. Segundo a conselheira, ele carregava traumas profundos desde cedo e sempre demonstrou instabilidade emocional. Possuía momentos de brincadeira e episódios de fuga, riscos e atitudes imprevisíveis. Em alguns momentos dizia que desejava voltar para a mãe e reconstruir essa relação, mesmo com a consciência de que ela enfrentava problemas de saúde mental e não conseguiria cuidar dele. Desejava também viajar sozinho, ser domador na África, entrar em lugares proibidos ou realizar ações perigosas, sem acreditar que algo pior aconteceria com ele.
A conselheira descreveu que havia nele uma mistura de carência, falta de limites e um sentimento profundo de descaso que jamais foi superado. Ela afirmou, no Portal da Serra, no Instagram, que ele não era apenas um “caso de polícia”, mas um menino que cresceu sem apoio emocional, referências familiares e tratamento adequado, o que o levou a se envolver repetidamente em situações de risco até o último episódio.
Um jovem com transtornos psiquiátricos, deixado à própria sorte, excluído de tratamento, de rede de apoio. Falha do sistema e das políticas públicas.
Afirmou também que teve mais de dez passagens pelo sistema socioeducativo e diversas recomendações formais para acompanhamento em saúde mental, mas o Estado se limitou a puni-lo sem oferecer a terapêutica adequada. Reforçou que Gerson buscou ajuda, mas encontrou um sistema negligente, incapaz de garantir o atendimento psiquiátrico de que ele precisava.
Dentre inúmeros Vaqueirinhos, hoje me preocupo com o Boró, não importa qual a sua cidade de origem. O pai é o acaso, sem identificação. A mãe, entre idas e voltas, na atualidade se encontra imersa em drogas ilícitas e lícitas e em recicláveis para comprar a próxima pedra e o próximo tubete de cocaína. Não reside na cidade dele. Quem procura cuidar dele é a avó enferma que se comove por sua situação. Menino ainda, manifestou-se uma doença autoimune. Na escola, passou pouco, pois, com dificuldade de aprender, foi motivo de bullying. Sua reação, de acordo com seus problemas psiquiátricos, era ameaçar os gestores e agredir quem lhe provocava. Diante de seus problemas mentais, encaminharam-no a um setor do município para saúde mental. Juntaram-no a um grupo de transgressores das leis. Foi a sua escola, a sua aprendizagem maior, seu grito de “independência”. De lar provisório, indicado pelas autoridades competentes, foge e retorna à biqueira. Embora faça alguns contatos com a avó, que o ama de verdade, a biqueira é seu mundo, na qual se “alimenta” e se sente capaz.
Seu futuro é uma incógnita, mas sem dúvida existe para ele e para diversos meninos um “compartimento de leoa” preparado para apagar sua existência.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista