OPINIÃO

Pés e o rumo da vida


| Tempo de leitura: 3 min

- Alexandre, você está patinando neste assunto. Ele já lhe custou mais tempo de vida do que deveria - disse para mim minha amiga Cinthia, enquanto olhava as cartas na mesa, sobre uma toalha vermelha. Sua postura era ereta e a voz suave, mesmo quando se  tratava de um assunto da maior seriedade, como era o caso.

 Eu, do outro lado da mesa, estava desanimado, frustrado e um tanto irritado de que as coisas simplesmente não progrediam da forma que eu esperava. Minha postura deveria ser péssima, tensa e encurvada, refletindo a minha decepção.

 Eu e a Cinthia gostamos de estudar algo um tanto incomum: o tarô e suas vertentes. O que começou como um jogo na metade do século XV virou expressão artística e atravessou todo esse tempo sendo carregado de simbolismo e formas arquetípicas. Suas cartas evoluíram e ganharam tantos significados que hoje refletem várias imagens e sentimentos do subconsciente do ser humano, algo aparente até nos nomes das suas cartas, tais como “Justiça”, “Força” ou mesmo “a Morte”.

 Eu, estudioso da mente e das energias do corpo e ela, cartomante profissional de muita experiência e sensibilidade, por vezes nos reunimos para compartilhar estudos, ideias sobre “leituras” de cartas e suas combinações. Tudo bem instrutivo e divertido a ponto de, ocasionalmente, me animar para uma leitura de algum aspecto de mim mesmo que me falta clareza.

 Ela, com um sorriso, ergue os dedos e me mostra entre eles a carta que justifica o comentário dela: “o Eremita”, simbolizado na figura de um senhor de idade, um tanto encurvado e atento ao chão, com uma lanterna em uma mão para iluminar o caminho e um cajado na outra, para explorar o solo.
 Interessante como essa imagem remete a algo simples e ao mesmo tempo tão simbólico: caminhar e o colocar cuidadoso dos pés no chão, como uma metáfora para o próprio “movimento” de vida.

Tamanho zelo e cuidado com essa ação são seguros, mas, como transmite a longa barba branca no senhor da carta, é algo demorado de se fazer, onde cada passo é pensado demais, chegando a ser até temerário.

 Associado com um cinco do naipe de ouros, que simboliza rigor e escassez de recursos, o Eremita ali no caso me transmitia a ideia de que eu, consulente, estava insistindo em trilhar de forma obstinada e detalhada um caminho que evidenciava ser de pouca valia para mim mesmo.

  O “caminhar na vida” também possui um simbolismo poderoso no nosso próprio corpo. Na minha experiência médica, dores nos pés refratárias aos tratamentos, mesmo quando eles são adequados, merecem ser investigadas neste contexto de “dificuldade” de caminhar adequadamente na vida. Por vezes, equívocos de pensamento nos prendem em fatos e eventos de uma forma tão tenaz que a nossa percepção corporal, mais integral que a simples consciência, nos avisam dando aos pés uma demanda de se deslocarem para longe do metafórico “terreno” de eventos onde nos encontramos.

 Tendinites, fascites e mesmo distúrbios das pequenas articulações dos pés podem ser agravados devido a uma “tendência” para a inflamação destas estruturas, influenciadas pelo sistema imunitário e nervoso, que, por sua vez, respondem também às percepções sutis do nosso inconsciente. 

Com um suspiro levanto os olhos para a Cinthia, fazendo a pergunta que já sabia a resposta: “- Então esqueço tudo e levo a minha vida para frente neste assunto, amiga?”

 - “Demorou” – disse ela, impecavelmente sorridente, baixando a carta na mesa.


Dr. Alexandre Martin é médico, especialista em acupuntura e com formação em medicina chinesa e osteopatia (xan.martin@gmail.com)

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