Em 24 de junho de 1859, um comerciante suíço chamado Henry Dunant viajava a negócios pelo norte da Itália quando passou por um dos episódios mais sangrentos da história europeia: a Batalha de Solferino. O confronto entre os exércitos da França e da Áustria deixou cerca de 40 mil mortos e feridos em poucas horas — um mar de sofrimento humano espalhado pelos campos da Lombardia.
Dunant, apenas um viajante que por ali passava, diante do horror absoluto, tomou uma decisão que mudaria a sua vida e a de muitos outros: parou sua viagem e, contando com a ajuda de moradores locais — mulheres, idosos, gente comum que não estava na batalha - improvisou, em uma igreja, um espaço de socorro, atendendo indistintamente soldados franceses e austríacos.
Essa experiência foi registrada no livro Lembranças de Solferino, publicado em 1862, e que inspirou a criação da Cruz Vermelha Internacional.
Dunant introduziu, de forma pioneira, a ideia de que o indivíduo ferido em combate readquire sua condição de humanidade, o que o torna merecedor de proteção, cuidado e dignidade, independentemente de sua filiação política ou identidade nacional. Com sua atitude, rompeu com uma lógica que reduzia o ferido a um pertencimento nacional ou militar, e apontou um olhar que restaurava, acima de tudo, a condição humana dos combatentes
Dunant foi além das fronteiras, das bandeiras, das crenças, ao propor uma ética da compaixão ativa, cujo fundamento reside na superação das barreiras impostas pela guerra. Um pensamento presente no espírito da Declaração dos Direitos do Homem de 1789. ao preconizar que enxerguemos o ser humano antes de sua identidade nacional, étnica, política ou religiosa. Lembrou ainda da necessidade de se suspender as fronteiras nacionais no momento do atendimento humanitário.
Em reconhecimento à sua contribuição, Henry Dunant foi laureado com o primeiro Prêmio Nobel da Paz em 1901. Foi o reconhecimento de um gesto civilizatório. A fundação da Cruz Vermelha representa, simbolicamente, o nascimento de uma consciência internacional pautada na dignidade humana universal.
Hoje, em tempos em que conflitos armados persistem e novas formas de violência se instalam, a leitura de “Lembrança de Solferino” continua me provocando. Ela é mais que um exercício de memória: é uma convocação ética. Somos capazes, ainda hoje, de reconhecer no inimigo derrotado, no corpo abatido pela guerra, a face comum da nossa humanidade?
Henry Dunant atravessou uma guerra e escolheu a compaixão. Cada vez que pego o seu livro, me lembro que a verdadeira revolução ainda é possível — e começa com um gesto simples de enxergar no outro um ser humano como eu.
Francisco Carbonari é ex-secretário de educação de Jundiaí (fjcarbonari@gmail.com)
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VIVALDO JOSE BRETERNITZ 06/05/2025Excelente e pertinente texto.